Suportar a presença do perdido

"A coragem do primeiro pássaro", de André Dahmer, tematiza a convivência do poeta com seus fantasmas
André Dahmer, autor de “A coragem do primeiro pássaro”
10/11/2016

Conta Clarice Lispector que quando leu, na pré-adolescência, O lobo da estepe, de Hermann Hesse, começou a escrever um conto por tanto tempo que não o suportou, terminando por rasgar o manuscrito. Anos depois, começou a considerar insuportável os dias em que não escrevia, tendo-os como dias de morte. A insuportabilidade da vida e a insuportabilidade da escrita parecem operar um jogo de forças inversamente proporcionais. Em ambos os casos, está em jogo a convivência. Seja com pessoas, seja com formas (textos, poemas, filmes), a convivência dispõe a suave medida do necessário e do insuportável.

“Convive com teus poemas, antes de escrevê-los”, aconselhava Drummond em A rosa do povo. Mas seria possível conviver com os poemas depois de escritos? Conviver significa também a suportabilidade de dois ou mais viventes. Os poemas vivem antes de serem escritos? Durante a sua escritura? Depois? Na sua Escola das facas, João Cabral de Melo Neto sugeria um longo aprendizado, mediante uma coabitação, entre a poesia e as coisas. No poema-prefácio, dirigido ao editor do livro, sugere que a publicação de um poema equivale a “embalsamá-lo”, uma vez que “enquanto ele me conviva, vivo, está sujeito a cortes, enxertos”. No entanto, o poema aparece, ao mesmo tempo, como signo de fratura da vida que só pode ter como morte definitiva “o mumificá-lo, pô-lo em livro”.

A coragem do primeiro pássaro, de André Dahmer, conta a história de uma separação. Trata-se, de fato, de um tríptico, isto é, de um livro dividido em três partes-poemas, que vão do sujeito abatido às memórias surrealistas do amor e do trauma do rompimento. O livro não tematiza tanto a convivência do poeta com pessoas, mas com os seus fantasmas. É como se perguntasse: o que resta depois de termos morarmos juntos? O que há de suportável e de insuportável após o rompimento? Mas, principalmente, com o que se convive depois da convivência?

São três os momentos desse convívio. Na primeira parte, intitulada vocês não me conhecem, é a ferida viva do amor perdido a companheira do poeta.

vocês não me conhecem

antes de virar essa coisa
eu ria sorria gargalhava (…)

eu tomava banho de sol e chuva
eu tomava banho

Estes versos assinalam o fim da vida em comum dos amantes, e marcam o início da comunidade entre poeta e o amor depois do fim. É por isso que afirma coisas como “ela ainda mora no meu coração/ apenas mudou-se de quarto”. O universo da casa rege as associações de Dahmer na primeira parte do livro; na segunda, intitulada agora é guerra, a convivência abandona o refúgio e a casa se torna móvel — torna-se uma mochila. Os atributos da casa agora não se referem tanto a uma permanência, ou à nostalgia, quanto à mobilidade. Assinalam uma vontade de “seguir em frente”, e um retorno da vontade de “cuidar”, de si e do outro.

tirei um poema da miséria
dei casa banho comida
aqui fica o banheiro
aqui fica a cozinha

essa casa agora é nossa

Com essas palavras, o poema é trazido para o lar. Uma espécie de “convive com os teus poemas, depois de escrevê-los”. E escrevê-los se torna um modo possível — talvez o único — de seguir vivendo. São os poemas que permitem ao eu-lírico afirmar: “hoje/ minha casa é uma mochila/ e tenho uma amiga/ que é uma sacola de roupas pra lavar”. Nesse ínterim, os textos absorvem as características do eu-lírico, e se tornam, secretamente, metalinguísticos. Em outras palavras, é com as coisas transformadas em poemas que se convive. Fala-se, portanto, de poemas, de páginas impressas, de páginas amareladas, que constituem a memória, como sugerem as epígrafes de Ferreira Gullar e Edmundo Pereira. É com esse recurso que a morada, em que se compartilha a vida, se torna móvel, e, dessa forma, “dói bem menos”.

Essa característica mágica, da transmutação do simbólico em presencial e vice-versa, que constitui uma contribuição da poesia romântica, enseja alguma “magia” da convivência extrapresencial. Com isso, uma ação realizada em um lugar pode causar uma reação em outro lugar qualquer:

lá na cobal de botafogo
penso demoradamente em você
na barra da tijuca
você para de caminhar

e

olha para trás

O poder se manifesta em outros versos, como em “Escrevo seu nome na areia/ espero que todo oceano/ se levante contra sua fragilidade”, que logo se transforma em “escrevo seu nome em um diamante/ espero que todo universo/ se dobre à sua força”. De qualquer modo, para além de todo poder mágico e transubstancial da poesia, permanece a “jaula chamada afeto”, lembrando que “a gente brincava na praia/ quando o mar começou a recuar”. E é por isso que o poeta precisa dirigir a força transmutável da poesia para a própria memória. A terceira parte do livro, era ela era pra ser, retorna à dor sublimada da segunda, talvez na esperança de transubstanciá-la.

Como não é a vida do poema antes ou durante a sua escritura que está em jogo, mas sim a suportabilidade do mundo simbólico (do amor, do poema, vimos como coincidem de alguma forma) diante do eu-lírico arrebentado, não se encontrará aqui aquela carga intensificada e polissêmica da língua que reivindicava Pound em seu ABC da literatura. O trabalho de A coragem do primeiro pássaro se dá não tanto na linguagem como no desenvolvimento simbólico de uma casa onde o amor perdido e o poema escrito possam ainda viver e se atualizar. Essa casa extrapola a linguagem escrita — talvez seja por isso que o livro trabalha recursos extra verbais: suas páginas são pretas, a fonte é branca, e manchas pontiagudas preenchem as suas primeiras e últimas páginas, acusando um livro de poemas ameaçado.

Tal negatividade é também um dos temas de sua poesia, como nos versos:

desejo

que seu cheiro
se torne insuportável

que você quebre o objeto que mais gosto

bata nos meus pais
e receba uma proposta irrecusável
para trabalhar no japão

Aqui, a insuportabilidade atinge o limite, e o poeta anseia um impacto realmente profundo sobre as relações constituídas. De qualquer forma, está fora de seu alcance o rompimento, que só pode vir de fora. A não-convivência não é uma opção. Aí reside o aspecto ético do livro de Dahmer, como nos versos em que postula que mesmo os homens maus merecem o amor.

De todo modo, é cortante a constância das paixões. O tempo, para Dahmer, não apaga, mas reforça os afetos. Real ou ficticiamente, as pessoas lhes são sempre próximas. É por isso que diz que “ainda hoje [depois da separação]/ “cozinho porções para duas pessoas”, e que:

se sinto sua carne de anjo
a rosnar pela casa
preparo minha cama
do tamanho da ásia

A coragem do primeiro pássaro é o que o título sugere. Escreve-se como quem começa a enxergar, depois de muito tempo na escuridão. Como quem sai de um luto, tendo de encarar o sol sem os óculos escuros. A noite se torna um asilo do antissocial — que não tem forças para a sociabilidade por ter de dedicar todas as suas energias a uma convivência com forças arrasadoras. Segundo o poeta, a noite também guarda aqueles atributos “mágicos” da poesia: “a noite faz meus curativos/ a noite beija meus machucados/ a noite impede que você se banhe/ com a água sagrada do meu olho”; mas não parece ser suficiente.

A coragem do primeiro pássaro
André Dahmer
Lote 42
64 págs.
André Dahmer
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1974. É artista plástico, desenhista e poeta. Colabora com quadrinhos nos jornais Folha de S. Paulo e O Globo.
Rafael Zacca

Poeta e crítico literário. É doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Professor de Estética do departamento de Filosofia da PUC-Rio. Ministra oficinas de criação literária. Autor de O menor amor do mundo (7Letras, 2020, poemas) e Formas nômades (Urutau, 2021, crítica).

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