Super-heróis babélicos

Resenha do livro "Zigurate: Uma fábula babélica", de Eduardo Nasi
Max Mallmann transita entre o fantástico e a ficção científica
01/12/2003

Nas histórias de Superman, há um padrão na nomeação dos personagens que cercam o alter ego de Clark Kent: tanto seus três amores (Lois Lane, a jovem Lana Lang e a enigmática sereia Lori Lemaris) quanto de seu maior algoz, Lex Luthor. Não que isso seja determinante, mas não chega a ser uma divertida coincidência que Max Mallmann tenha a duplicidade da letra seguinte ao L nas iniciais de seu nome.

O autor é porto-alegrense de 1968. Hoje, mora no Rio de Janeiro e trabalha como roteirista da TV Globo (fez Malhação, alguns especiais e uma novela). Estreou com um romance de ficção científica, Confissões do minotauro, livro que saiu em 1989 com a chancela do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul. Mondo bizarro, lançado sete anos mais tarde pela Mercado Aberto, é ficção científica da mais pura, uma deliciosa aventura em um planeta distante. Já a novela Síndrome de quimera, que marca a mudança para a Rocco, desvia de curso rumo a um realismo mágico — fica na fronteira entre os dois gêneros porque: a) os limites da ficção científica se expandiram bastante; e b) os antecedentes de Max ajudam a impor o rótulo.

Zigurate: Uma fábula babélica é ainda mais fácil de se rotular como ficção científica do que a Síndrome. O romance começa em Paris, quando Sophie Brasier, uma portadora de um vírus fatal com data de morte anunciada pela medicina, está na Bibliothèque Nationale pesquisando material para enriquecer sua tese de doutoramento, Interpolações de Mitos Mesopotâmicos no Texto Bíblico — que existem, e em quantidade, nos Testamentos. De repente, encontra fragmentos de um relatório da formação da biblioteca em que se lê a descrição de uma Bíblia diferente, em que, antes de Adão e Eva, Deus teria criado um casal a partir do ouro. À imagem e à semelhança de Deus, Lugal e Nin são imortais e indestrutíveis (e têm blogs, a propósito: lugal.blogger.com.br e ninbynin.blogger.com.br). Arrogantes, foram desprezados pelo criador, que optou por um novo casal — feito de barro, portanto, frágil, quebradiço. O tema do manuscrito encanta Sophie, que mergulha na investigação ao mesmo tempo em que supera a morte anunciada. É assim que a pesquisadora descobre pistas sobre a lenda, que tem estreita relação com o mito de Gilgamesh, e percebe a aparição de certos Nin e Lugal por momentos diversos da História.

De repente, o mito representado na Bíblia Áurea (afinal, é a dos homens de ouro) se torna verdade. Lugal está escondido em um hotelzinho escocês, bebendo cerveja em pubs e tentando levar uma vida tranqüila. Separou-se de Nin — o que são décadas de solidão para aqueles que passarão a eternidade juntos? —, que virou assessora de marketing de um político corrupto subvencionado pelo crime organizado carioca.

Por aproximação, mais uma vez, pode-se dizer que Zigurate é uma ficção científica. Afinal, tem os genes de Max, atravessa cinco mil anos, há algo de fantástico, os limites do gênero se expandiram etc. Mas outro rótulo parece mais apropriado: a fábula babélica tem ares de narrativa de super-herói. Lugal e Nin são mais que humanos, têm uma origem fantástica e, além da imortalidade, apresentam poderes como a força, inteligência e velocidade fora do comum e invulnerabilidade. Flash Gordon pode aparecer na árvore genealógica de ambos, mas a relação mais direta é com Superman. E ainda mais com Matrix, a trilogia cinematográfica que recém se encerrou — com os filmes, os irmãos Wachowski tentam propor uma forma com que personagens com poderes sobre-humanos soem mais palatáveis 65 anos depois da estréia de Superman.

Todo rótulo carrega seus fantasmas, e nisso inclui-se o dos super-heróis, gênero típico da cultura de massas e do desprezo intelectual (que contagiou nas Américas até mesmo os mais notáveis exemplos de quadrinhos). A essas alturas, portanto, cabe uma intervenção mais, digamos, direta, antes que eu consiga afungentar todos os possíveis leitores e atrair a ira eterna do escritor: Zigurate não é arremedo de pulp fiction, daqueles que cabem melhor nos cantos mais escuros das bancas de jornal do centro da cidade. Fato é que, apesar de Batman, Homem-Aranha e afins terem influenciado toda a cultura pop do século passado, os personagens tiveram uma participação pífia na literatura — geralmente, em adaptações torpes das revistas. Depois de fazer uma ficção científica louvável, Max consegue entrar de sopetão em um gênero quase inédito no Brasil (e no resto do mundo) para apresentá-lo já de uma forma bastante depurada.

Mais que isso: Max é extremamente hábil em usar seus super-heróis como condutores de uma viagem bem-conduzida por um caldeirão de elementos da cultura pop (com alguns intertextos mais eruditos). A certa altura, o leitor se perde na fronteira do ficcional com o real, que o autor manipula de modo que fique ainda mais sinuosa. Em sua série de “E se…?” (a propósito, pergunta que a editora Marvel Comics utilizou por anos a fio para criar mundos hipotéticos em seu universo de super-heróis), é capaz de, em certa medida, o leitor perguntar: “E se isso realmente aconteceu?”.

Há, ainda, um terceiro rótulo que cabe a Zigurate: o do livro que ocupa um nicho vago na literatura brasileiro. Romance gostoso de um narrador competentíssimo, cheio de ação, bem escrito (o que nos parece obrigatório aqui não é tão óbvio quando se vê o gênero), com tema intrigante, algum suspense, personagens cativantes e, o que soa mais difícil de se conseguir, amarração impecável desses elementos.

Mas rótulos, bem como coincidências de iniciais, não servem para nada.

Zigurate: Uma fábula babélica
Max Mallmann
Rocco
224 págs.
Eduardo Nasi
Rascunho