O romance, de modo geral, tem como missão explicar o mundo. Não se quer dizer com isso que deva abandonar o universo artístico de onde surgiu e ao qual pertence: a literatura. Quanto mais esclarecer o leitor, tanto melhor. O ser humano é um ser que vive de narrativas. Cada vida é uma história, e há histórias que são arquetípicas, explicam a gênese do mundo. No caso presente, temos um romance que muito contribui para desfazer a ingenuidade daqueles que acreditam que política um dia combinou com pureza. Não se advoga aqui a defesa de algum método escuso para nos reger a vida, apenas se constata a nossa injusta organização como pólis e como nação. Entendendo-se pelo inverso, descobrimos como esta mesma nação deveria ser. O romance em pauta ratifica a teoria. Mas não fica somente nela.
Abaixo do paraíso, de André de Leones, é dividido em oito capítulos, todos correspondendo aos dias da semana. A narrativa começa numa segunda-feira, continua pelos dias que se seguem e termina na segunda seguinte. Cada dia acompanha a vida de Cristiano, que está por volta dos trinta anos, originário de uma família de fazendeiros, formado em Direito (sem se engajar na profissão), tornando-se um “tarefeiro”, sujeito que pratica os serviços sujos no universo político, como levar dinheiro clandestino para compra de votos e de dossiês que comprometam aliados ou adversários, ou conduzir um automóvel para levar ao dentista a amante de algum assessor palaciano. Jamais está nas folhas oficiais de pagamento.
A história, ambientada em Goiás (Goiânia e arredores) e Brasília, reflete de modo muito verossímil o dia a dia da vida política, sobretudo nas cidades médias ou pequenas, celeiros de políticos clientelistas que acabam lançando-se a nível estadual e nacional. Leones não deixa ao leitor ilusão alguma quanto à organização da vida pública brasileira, não poupando corredores palacianos, gabinetes, câmaras, e senado federal. A corrupção, como ferida purulenta, grassa em todos os lugares frequentados por políticos e seus assessores. Não faltam assassinatos.
Devido ao momento em que o Brasil atravessa, seria possível pensar tratar-se de um panfleto político, que teria o objetivo de denunciar os desmandos da nossa vida pública. Mas o principal da narrativa não é isto. Na verdade, seus personagens, o amor, os consequentes relacionamentos, rompimentos e solidão são os assuntos que mais se destacam e chamam a atenção. Nada permanece de pé.
Religião
O romance tem muitas citações bíblicas, como o próprio título já indicia. Leones talvez tenha desejado mostrar, através de seus personagens, a formação religiosa da maioria dos brasileiros. Formação esta que, na verdade, acabou ficando apenas na especulação dos textos bíblicos, abandonada pelas necessidades e pelas artimanhas da vida prática, sobretudo quando se leva em consideração a política partidária. Apesar das citações, lembradas ou citadas por Cristiano, o enredo apresenta homens e mulheres sem qualquer sentimento de culpa quando buscam o prazer ou a realização pessoal, tanto faz se se trata do protagonista ou de algum personagem adjacente. Como exemplo: O avô falecido do próprio Cristiano, figura lendária nas histórias contadas nos botecos da cidade, é conhecido como grande garanhão porque tinha relações sexuais com as meninas, filhas dos empregados da fazenda. A meia-irmã do protagonista não possui escrúpulo algum ao arranjar um homem para transar. Ela estuda arquitetura em Goiânia, mas em alguns finais de semana vai a Silvânia, sua cidade natal. Numa dessas estadas, reencontra Cristiano. As pessoas levam uma vida quase “natural”, isto é, não existem valores morais.
Assim como em seu livro anterior, Terra de casas vazias, o tempo presente também transita no limite, tanto quando aborda o contato entre os seres humanos ou a respeito do caráter trágico da existência. Um exemplo disso é o desfile de personagens suicidas ou com tendências a se matarem em acidentes automobilísticos. É no imiscuir-se na vida desses personagens que está o ponto mais rico de sua literatura. Na verdade, Abaixo do paraíso é um livro de personagens, todo o resto pode ser considerado pano de fundo.
Devido ao momento em que o Brasil atravessa, seria possível pensar tratar-se de um panfleto político, que teria o objetivo de denunciar os desmandos da nossa vida pública. Mas o principal da narrativa não é isto.
No fio da navalha
Cristiano, ex-aluno de um colégio de freiras, ex-estudante de Direito, vive no fio da navalha. Seu comportamento destrutivo o leva a beber demais e sempre a arranjar confusões por onde passa. A mulher de Paulo, seu melhor amigo (quem lhe arranja as tarefas), fora sua namorada antes de conhecer o marido, mas nada revela a este. Após muito tempo fora, quando reaparece em Goiânia é ela quem, de modo mais desinteressado, pensa nele, chegando-lhe a oferecer roupas do próprio marido. Sílvia lhe admira a vida aventurosa, em contraste à de Paulo, burocrata oficial sempre dependente da ascensão do principal político local, no caso, o governador.
Brasília também faz parte do roteiro de Cristiano. Após um imprevisto acontecido em uma cidade do interior de Goiás, ele chega à capital e procura um hotel discreto onde possa ficar esquecido do mundo durante alguns dias. Ali conhece Mariângela, uma mulher carente e cheia de traumas. De início, pensa tratar-se da recepcionista ou arrumadeira, mas depois descobre que é a proprietária do hotel. Mariângela é viúva, conta a ele sobre seu passado, o casamento, e o ideal do marido, um dentista que tinha gosto pela administração de hotéis nas horas vagas.
A oposição interior versus cidade, como acontece em relação a Silvânia e Goiânia, depois entre Goiânia e Brasília, sugere o percurso humano em busca do crescimento e da felicidade. Simone, a meia irmã de Cristiano, morava em Silvânia, mas vai a Goiânia estudar arquitetura. O mesmo Cristiano é também de Silvânia, mas troca a pequena cidade pela capital do estado. A dona do hotel, Mariângela, troca o Rio Grande do Sul por Brasília. Seu marido, também gaúcho, estudou na UNB como um meio de fugir da família para um local mais distante possível. Formou-se e voltou para buscar a então namorada. Casam-se e mudam-se em definitivo para o DF. Um dos pontos alto do livro é trazer toda essa discussão. Mas será que os seres humanos que compõem toda essa fauna em constante trânsito encontrarão a felicidade? Como conclusão, o que se pode reparar é o vazio da condição humana: move-se muito, mas sempre se está no mesmo lugar.
André de Leones é muito hábil com a linguagem do romance, desenvolvendo bons monólogos interiores, diálogos e falsos diálogos, apresentando homens e mulheres em constante busca por uma saída. Esta, como possivelmente não existe, esbarra mais uma vez na tragédia, que pode incluir a morte, como foi vivenciada por Cristiano ao voltar do colégio, ainda criança, após o falecimento de sua mãe. Diante dos garotos, constantemente surpresos, tinha de responder sempre a mesma pergunta: é verdade que sua mãe morreu?