Subterrâneo a céu aberto

A Ciência do Acidente, é, foi, tem sido, a dor de dente do Joca Terron. Dor mal-educada, pois não se comporta como todas as dores do mundo
01/12/2001

A Ciência do Acidente, é, foi, tem sido, a dor de dente do Joca Terron. Dor mal-educada, pois não se comporta como todas as dores do mundo. Dor sem ética, sem etiqueta, que dói mais na boca alheia do que na do único proprietário da empresa. Mas, será? Será mesmo? Será que essa reunião de incidentes é mesmo uma editora? Quem disse? O Joca diz, o povo todo diz. Se o povo diz, está dito. Então soltem os cachorros, botem pra ajambrar os livros do caos! Mas, com calma. Sem sustos, senão a platéia desmaia.

Livros do Cão (primeira e única coleção da editora) é um desses empreendimentos que insistem em fazer jus ao nome que carregam. Isso se chama “filosofia de vida”, eu acho. Com três anos de existência e pouco mais de vinte títulos, acidentados cada qual à sua maneira, a Ciência persiste. Ciência não-euclidiana, cínica, ácida. Os primeiros títulos foram deslizes de percurso, desses inevitáveis, que logo caem na boca do povo e na bolsa da cultura. Meros escorregões, mesmo? Se o povo diz, está dito, a cultura que se vire com o bagulho. A culpa é toda do Joca, que decidiu apertar a mão do Valêncio Xavier, do Glauco Mattoso, do Luiz Roberto Guedes e de outros desclassificados. Apertou e fumou na hora: do primeiro, editou Meu sétimo dia, do segundo, três coletâneas de sonetos, e do terceiro, o Calendário lunático.

Meses depois, os últimos títulos não deixaram por menos. Mais e mais tropeços, tramóias, ações entre amigos. Nu entre nuvens, do Reynaldo Damazio, já leu? E os Faroestes, do Marçal Aquino? A Paisagem transitória, do Mario Domingues, já visitou? Mas do Precioso impreciso, da Luci Collin, você já precisou, não? Nem do Pescoço ladeado por parafusos, do Manoel Carlos Karam, só pra exercitar os caninos? Que Não há nada lá, pois está tudo aqui, você já percebeu, o Joca Terron te disse, né? Não? O que são? Palavras impressas em madeira morta? Só isso? De jeito nenhum. Não está ouvindo o corre-corre, os vizinhos chamando a polícia? Os novos títulos da Ciência são disparos na noite, tiros na Broadway, isso sim. Sangue da serpente que devora o próprio rabo, da ciência que enfia-se em si mesma.

Quando você flagrar o Reynaldo Nu entre nuvens — radioativas, de gafanhoto, de poluição —, não se assuste. O livro aberto — todo livro aberto no meio — é o encontro de duas nádegas. Ou de coxas femininas vistas de frente. E daí? Toda nudez será castigada, mas não aqui nem agora. Não tape os olhos. Procure alternativas. A nudez pode ser o resultado de um esmerado trabalho com a linguagem. Pode ser o necessário fio de luz sobre o ecossistema pouco freqüentado em que circula a poesia mais inteligente de hoje. Pode ser a poesia avessa a hermetismos. A poesia que se faz compreender, sem, é lógico, se deixar contaminar pela banalidade do coloquialismo.

Quando você tentar atravessar Os faroestes, do Marçal, verá que a refrega não está só na costa do Pacífico, mas no Sul Maravilha, no norte das águas e a leste do Éden. Prosa de confronto, fora-da-lei: não confie em ninguém, muito menos no legista. São onze contos com os caninos de fora, armados até os dentes, prontos para a briga. O mel do melhor? Os desarmados, os que não dão um tiro sequer: Trincheira (o pior inimigo é o amor conjugal), Homens mortos (a garota tinha um ideograma tatuado no pulso esquerdo), Na serra, fora dela (o café, a água, o suco, a menina contrabandeada) e Ferrugem (a mulher de quarenta anos atrás, hoje). Gente áspera, rancorosa, inimiga da onça. Gente lírica, mal-encarada, obscena feito assovio de bala.

Quando você se embrenhar na Paisagem transitória, do Mario, das duas uma: se estiver sozinho, se arrependerá de não poder gritar muito alto, se estiver mal acompanhado, o transe será mais intenso, o grito, mais sufocado. O que Homero e Horácio fazem aí, nessa miragem fugaz? E Garrincha e Noel Rosa e (gostosas ou não) as gatas do Musarium? Se ficar o bicho pega. Se correr. O grito entalado. Dois dedos de poesia abraçar-te-ão, jantar-te-ão, defecar-te-ão. Poesia que teve a sorte de nascer do outro lado das vanguardas, no verso das utopias. Paisagem feita de vãos, dos destroços de Tróia, dos relâmpagos da insônia. Entre isto e aquilo, túmulos: o eterno chá na ABL.

Quando você sentir a pressão na nuca, na boca, do Precioso impreciso, da Luci, verá que “fetichismo” é mais do que areia nos olhos. Estatísticas provam que os contos da Luci são mais rigorosos do que o inverno astral que se abateu sobre o Paraná. Está lá. Na página 21. Estatísticas provam. A sensualidade e o sarcasmo de um batalhão de poetas enfiadas na ficção: Elisa, Carmen, Teresa, Regina, Denise… Poetas auto-oxidadas. Estrias discretas, seguro contra incêndio, cabelo precisando de um banho de óleo. Irônica, a danada! Irônicas, todas elas. Falam da morte do autor (e do enredo) como se não estivéssemos todos aqui, saltitantes em nossas tumbas (enredados até o pescoço em nossos ossos).

Quando você abrir a porta da geladeira e se deparar com o Pescoço ladeado por parafusos, do Karam, não se sinta culpado. Não tente conter o ríctus, rir é o melhor remédio. Uma novela? Uma conurbação de contos? São, na verdade, dois cadernos: o de geografia e o de caligrafia. O primeiro fala da Grande Guerra contra os taedos. De quebra, um projeto de bestiário: Karam & Carroll, Karam & Jarry, Karam & Ionesco. O segundo traz um apanhado de medos. Medo de escuro. Medo de casca de banana. Medo de espirro. Medo de puzzle. Karam é nosso Chapeleiro Louco de porte altivo e olhar circunspecto. Quando ninguém está olhando (só as crianças), ele faz careta e mostra a língua. O riso é o resultado.

Quando você sentir no dedão do pé direito certa comichão mística, aí, sim, saberá que Não há nada lá, do Joca, está fazendo efeito. Achou mesmo que não havia nada? Romance de trás para a frente (defeito?), matemático e metonímico como a Histérica História Humana. Romance em que, no avesso do Big Bang, William Burroughs e Raymond Roussel e Torquato Neto e Lautréamont e Rimbaud e Aleister Crowley e os pastorinhos de Fátima encontram uma penca de gente famosa. Romance de um só fôlego, cujo fogo abrasa o tesão dos diálogos demoníacos. Pois Satã também está lá. E Pessoa e Hendrix e Billy-The-Kid e o Papa Pio XI. O título mente, morde o vazio: presença da serpente menos a presa. Estão todos lá, mesmo que não haja nada em que se apoiar.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho