Sublime grotesco

"Onde pastam os minotauros" investiga as faces da irracionalidade humana, a ferocidade do capitalismo e a exploração dos trabalhadores
Joca Reiners Terron, autor de “Onde pastam os minotauros” Foto: Renato Parada
01/12/2023

Os subúrbios da morte. Assim é descrito um matadouro na região central do Brasil, principal cenário de Onde pastam os minotauros. Cão, Crente e Lucy, funcionários do abatedouro, adentram todos os dias um ambiente hostil. Na escrita de Joca Reiners Terron, figurações que vão de metáforas à mitologia moldam a trajetória do trio protagonista. O romance combina elementos aparentemente opostos, como o realismo de denúncia social e uma tradição antirrealista, que dialoga com o caráter surreal da literatura.

Em Onde pastam os minotauros, acompanhamos os bastidores de uma rebelião trabalhista. A temporalidade entrecortada da trama, um trunfo de Terron para manter o suspense, revela os dilemas dos personagens. Lucy preocupa-se com Cão. Já ele, solto há pouco tempo, após uma temporada na prisão por tráfico de drogas, questiona a moralidade por trás do emprego no matadouro. Crente sente culpa pela morte da esposa e pela doença da filha, acometidas pelo coronavírus.

No decorrer da narrativa, torna-se claro que o plano do trio é tanto um modo de se libertar da exploração dos patrões, cujo poder se expande para fora do matadouro, quanto uma vingança pelo ciclo de violência, fruto da busca pelo lucro e da própria acumulação capitalista, processo condensado por mais de uma geração. A exportação de carne para o Oriente Médio — enquanto a população regional padece de fome, vale acrescentar — é também um dado interessante, visto que Ahmed, um trabalhador mulçumano, é parte central da rebelião. A partir disso, o plano ganha ares cinematográficos.

Os limites entre humanidade e animalidade são colocados em questão. Esse elemento vem à tona principalmente com Cão. Além da associação evidente, presente no nome do personagem, suas reflexões conjugam imagens em que os dois universos se interpenetram. O romance confere consciência aos bois — oferecendo, inclusive, a possibilidade de reflexão sobre o mito do Minotauro a partir de seu ponto de vista.

Seria simplista, entretanto, afirmar que Onde pastam os minotauros perscruta faces da irracionalidade humana. É mais do que isso. Com seu enredo, Terron problematiza estruturas enraizadas. Assim, aspectos do capitalismo como o lucro e a exploração desenfreada são vistos com estranhamento — com um reminiscente teor freudiano, o familiar torna-se infamiliar.

A animalidade é evocada também com a figura do Minotauro, presente desde o título do romance. No mito grego, ele é uma criatura monstruosa, cujo corpo humano sustenta a cabeça de touro. O Minotauro é uma punição de Poseidon, uma vez que o rei Minos nega o pedido do deus para sacrificar um belo animal, abatendo outro no lugar. Ofendido, Poseidon faz a esposa do rei, Pasífae, apaixonar-se pelo touro, dando à luz o Minotauro, monstro que viveria preso em um labirinto.

A aproximação do romance de Terron com o mito grego revela as veias grotescas da trama. Isso se dá, em primeiro lugar, pela mistura de planos — como o humano e o animal. Em suas origens, o termo grotesco refere-se à pintura ornamental antiga em que elementos humanos e inumanos, como do reino animal e vegetal, são justapostos e combinados. Mas Onde pastam os minotauros paira também sobre acepções modernas do grotesco, uma vez que há a tentativa de trazer o sublime para as pequenas vidas do abatedouro, acostumadas ao ambiente terreno e mortífero.

Antirrealista e surreal
A proposta do livro, que dialoga com um caráter antirrealista e até mesmo surreal da literatura, pode ser um ponto de destaque, tendo em vista um cenário editorial inundado pelos mares da autoficção ou do realismo puro — aquele que se contenta com a realidade objetiva e suas implicações. Belos trechos, em que a aura de devaneio toma conta dos personagens, revelam a potência da escrita de Terron.

Os possíveis hermetismos e divagações metafísicas não afastam o leitor do teor social do romance e da profunda meditação que ele provoca. Escorre pelas páginas de Onde pastam os minotauros uma denúncia tão aguda quanto as que víamos em nossas obras de 1930, vide a acumulação do capital de Paulo Honório, o avarento fazendeiro de Graciliano Ramos em São Bernardo. Além da conhecida crítica ao lucro e à exploração capitalista, juntam-se temas como as consequências da pandemia para os mais economicamente vulneráveis e, espanta-se a atualidade, os conflitos do Oriente Médio.

Onde pastam os minotauros dialoga com as principais tradições da literatura brasileira, o que faz do romance uma amálgama narrativa, em que coexistem problemáticas sociais e sua consequente aspereza, um intenso lirismo, figuras de linguagem e a mitologia grega. Quando combinados, esses elementos elevam o potencial do livro. Eventuais excessos, tanto figurativos quanto a ênfase em mazelas sociais, passam despercebidos no conjunto, que resulta em uma bela fábula.

A sutil experimentação formal, que manipula as regras estritas do romance a partir da incorporação de elementos da lírica, é evidente. Ainda mais interessante é o movimento das palavras, com a disposição do texto, passando pelo uso de outros componentes gráficos. Não é exagero dizer que há um desenho da trama. Sem dúvidas, um jogo estético que acrescenta ao romance mais uma camada: a sobreposição entre prosa poética e a objetividade prosaica.

A inventividade de Terron culmina em um enredo ousado, estilhaçado no tempo, cuja consciência paira para além da realidade concreta. Isso merece ser louvado, em uma época em que a literatura estritamente factual parece estar levando a melhor. Surge, assim, um realismo particular. A mensagem do romance — se é que há (apenas) uma — está entregue. Resta na lembrança do leitor os capítulos labirínticos, uma batalha mitológica entre o lirismo e a crueza cotidiana.

Este talvez seja o maior acerto de Onde pastam os minotauros. É de se esperar que a crítica já tenha superado a necessidade de colocar rótulos em livros. Um bom romance, muitas vezes, não se deixa limitar. Joca Reiners Terron concilia elementos aparentemente opostos, desaguando em um romance que nos recorda o encanto do ficcional — e o quanto a imaginação espelha denúncias profundas. Muitos são os labirintos: os corredores do abatedouro ou a própria forma da narrativa. Não há lugar seguro ao leitor. Ao fim, o livro nos evoca os contornos do Minotauro, uma combinação inusitada, um estranhamento. Mas quando se trata de literatura, estes pastos costumam render bons rebentos.

Onde pastam os minotauros
Joca Reiners Terron
Todavia
184 págs.
Joca Reiners Terron
É autor de mais de dez livros, prosador, poeta, designer gráfico e editor. Nasceu em Cuiabá (MT), em 1968. Do fundo do poço se vê a lua (2010) venceu o prêmio Machado de Assis na categoria melhor romance.
Giovana Proença

É pesquisadora na área de Teoria Literária da USP e autora do romance Os tempos da fuga (Urutau, 2023), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.

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