Subjetividades múltiplas

Os contos de "Gosto de amora", de Mário Medeiros, trazem um olhar atento às complexidades e contradições intrínsecas à experiência negra no Brasil
Mário Medeiros, autor de “Gosto de amora”
03/11/2020

Assinada por Marcelo D’Salete, a capa do livro de contos Gosto de amora, de Mário Medeiros, apresenta o perfil de um menino negro. Já a quarta capa traz o perfil espelhado de um homem negro, com traços semelhantes, suscitando a possibilidade de que estejamos diante da mesma pessoa algumas décadas depois. Lidas desse modo, as imagens oferecem uma interessante introdução para a obra, visto que muitas narrativas tratam do árduo e doloroso processo de amadurecimento imposto a jovens negros na profundamente racista sociedade brasileira. Não obstante, importa perceber que o vulto figurado por D’Salete está sorrindo, e que a cor presente no fundo da capa é um rosa intenso — que remete, por certo, ao título do volume; uma cor que os valores sexistas presentes em nossa sociedade associam mais frequentemente ao gênero feminino. Tudo isso nos permite pensar em uma fuga aos estereótipos; em trajetórias que se desviem das trilhas predeterminadas por uma sociedade profundamente comprometida com a destruição de vidas negras. E tudo isso antecipa, de modo instigante, o teor das narrativas compiladas no volume.

Não é que não haja violência nas narrativas de Mário Medeiros; não é que nelas estejam ausentes o racismo e as diversas opressões que, na sociedade brasileira, incidem sobre corpos negros. Tudo isso se faz presente — de uma forma que poderíamos considerar inevitável, observando-se o registro dos contos, que muitas vezes se aproxima do discurso consagrado pela crônica. Não obstante, o texto de Mário traz as nítidas marcas de um escritor negro que escreve sobre seus (e suas) pares; marcas que denotam um olhar atento às complexidades e contradições intrínsecas à experiência negra no Brasil. Nas duas seções do livro — Histórias de meninos, que reúne oito contos, e Homem em janeiro, composta por sete narrativas —, é notável o cuidado com a figuração de subjetividades múltiplas, que constroem trajetórias particulares. Alguns elementos, decerto, se repetem; notoriamente, a raiva e o ressentimento, o que não causa espanto. Mas há também espaço para a empatia, para o amor e para toda a pluralidade de afetos que faculta às pessoas negras não sucumbirem à desumanização imposta pela opressão racista. Ainda a esse respeito, considerando-se a presença de homens negros como protagonistas nas páginas de Gosto de amora, o tratamento dispensado à afetividade se destaca por investir em dimensões notoriamente negligenciadas no processo histórico de construção das masculinidades negras. No homônimo Gosto de amora, assim como em Sumidouro e Menino a caminho, entre outros contos, a escrita de Medeiros se aprofunda em momentos de partilha e ponderação que oferecem vislumbres de sensibilidades pouco frequentes em narrativas nas quais homens negros ocupam posições de destaque.

Diferentes seções
Mesmo que as marcas autorais de Medeiros permeiem as narrativas compiladas em Gosto de amora, há notáveis diferenças entre os conjuntos de contos reunidos em cada uma das seções do livro. As narrativas de Histórias de meninos apresentam um ritmo mais ágil, recorrendo a dispositivos de representação — sobretudo no que tange aos personagens — que dialogam mais ostensivamente com elementos típicos do imaginário social, embora desafiando estereótipos; já os contos reunidos em Homem em janeiro têm um registro mais denso, investindo mais intensamente num tom reflexivo que sobressai, em particular, nas passagens digressivas.

Ainda que se possa lê-las de modo complementar — como registros literários de aspectos próprios de etapas distintas das trajetórias de sujeitos negros —, seria possível questionar se as duas seções do livro não constituem unidades autônomas, cujos elementos característicos ganhariam mais ênfase se publicadas separadamente. Ressalte-se, contudo, que isso em nada compromete a riqueza e o valor literário da obra. Gosto de amora é bem urdido e evidencia um olhar sensível sobre a experiência negra no Brasil contemporâneo.

Gosto de amora
Mário Medeiros
Malê
148 págs.
Mário Medeiros
É doutor em Sociologia pela Unicamp. Publicou em 2013 A descoberta do insólito: literatura negra e periférica no Brasil (1960-2000) e, em 2017, foi finalista do prêmio Sesc de Literatura na categoria contos.
Henrique Marques Samyn

É professor de literatura e escritor. Autor de Uma temporada no inferno e Levante.

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