Sonhos de um centauro

"O centauro no jardim", de Moacyr Scliar, é um romance alegórico e fantástico, erótico e grotesco, mitológico e psicanalítico
Moacyr Scliar por Oliver Quinto
01/05/2024

Hoje, “as experiências que os médicos nazistas faziam com os prisioneiros” que Guedali descreve em O centauro no jardim, romance de Moacyr Scliar, recordam Bella Baxter — esta espécie de Frankenstein — e os bichos monstruosos que habitam a casa e o laboratório de dr. Godwin no filme Pobres criaturas, de Yorgos Lanthimos, (“uniam a metade superior de um homem à metade inferior de uma mulher, ou aos quartos traseiros de um bode”). Na segunda passagem pela clínica do Marrocos — a fim de reverter sua cirurgia plástica —, o centauro tenta justificar a si próprio o beijo que dá na esfinge que ali encontra, a quem descreve com a lamuriante expressão:

Porque ela tinha um lindo rosto? (E o corpo de leoa?) Porque eu estava havia tempo sem mulher? Por piedade? Por uma espécie de atração pelo grotesco? Não sabia. O certo é que se apaixonou por mim, a pobre criatura.

Prêmios APCA 1980 e Machado de Assis 1981, o clássico contemporâneo de Moacyr Scliar (1937-2011) retornou às livrarias no fim do ano passado (a 10ª edição é de 2004). Eleito um dos cem melhores livros de temática judaica do mundo (dos últimos duzentos anos) pelo National Yiddish Book Center (EUA), em 2002, O centauro no jardim é alegórico e fantástico, erótico e grotesco, mitológico e psicanalítico. Devorei-o em uma pousada, onde meu pai e eu nos hospedamos com nosso cachorro — ao som de um riacho e vários canários — durante o último feriado de Carnaval (e não é que uma fantasia de centauro surge em um bloco carnavalesco, nas páginas do romance?!). O livro é uma folia!

Centauro, esfinge
“Não tem por que tentar analisar com qualquer rigor ou lógica o romance de Moacyr Scliar. Como toda fantasia, ele reflete quem o lê”, escreveu Cora Rónai na Folha de S. Paulo. Nesse sentido, o próprio Guedali rechaça qualquer explicação sobre si e reafirma sua condição indecifrável: “Psicanálise, materialismo dialético — nada; leis do mercado — nada, nada; ficção — nada; nada parecia aplicável ao meu caso”, ele lamenta. “Centauro, irremediavelmente centauro. E nenhuma explicação plausível.”

A despeito disso, O centauro no jardim possui, sim, duas chaves de leitura ou camadas de interpretação complementares, como o próprio centauro. Na primeira, o ser mítico encarnado e humanizado identifica-se com o “judeu sujo”, o imigrante e outros excluídos, humilhados e perseguidos da sociedade brasileira; na segunda, ele simboliza a dualidade do homem e sua natureza híbrida (animal, humana, divina). Segundo verbete do Dicionário de mitos literários (org. Pierre Brunel), o Centauro, “ser mitológico de dupla natureza”, representa “o encontro da força com o pensamento, dos impulsos com a razão, do instinto com os sentimentos, assim como os conflitos que podem nascer daí”.

Ser estranho, dividido
Nascido em 1935 em uma pequena fazenda no interior do Rio Grande do Sul, Guedali é filho de colonos russos judeus, imigrantes perseguidos por antissemitas (como os pais de Scliar). Ainda bebê, ele é mantido em segredo; quando o mohel se recusa a fazer sua circuncisão, o pai responde: “Não é cavalo, […] é um menino defeituoso, um menino judeu!”. (Ao longo do romance o centauro também será identificado com o amputado ou transplantado; o “defeituoso”; o transexual; o “índio”, “selvagem do Brasil”; e até o gaúcho, “meio gente, meio cavalo”.)

É no circo de aberrações que Guedali encontra aceitação e pertencimento, apenas passageiros. Desde cedo, a criatura faz perguntas existenciais: “por que sou assim? O que aconteceu, para que eu nascesse deste jeito? […] poderei eu transformar-me num ser humano igual aos outros? Existe essa possibilidade?”.

Como um Pinóquio, Guedali “queria ser gente, […] queria tanto ser normal”. Na capital Porto Alegre ele tem uma esperança: “Ninguém vai reparar em ti”, assegura o pai.

O homem-cavalo, contudo, não é somente um ser estranho, mas dividido (como todos nós). Diz o Dicionário de mitos literários: “No seu interior, o Centauro sofre duas forças que se opõem”. Quando foge de casa, eis o seu método de peregrinação: “Galopava à noite e me ocultava de dia”. (Por analogia, ele descreve as forças ocultas do inconsciente.)

Ego, Id
Em uma estância rural, Guedali se apaixona pela centaura Tita. “E se a gente tentasse alguma coisa, um tratamento?”, ela sugere. Ele não se decide logo: “Não era só medo da cirurgia, não. Era a sensação de estar violando a obra da Natureza, talvez resultado de uma disposição superior — divina, quem sabe”. Em crise, corpo e psique dão-se as mãos e andam juntos: “Cauda, patas, cascos eram coisas tão minhas quanto o meu id ou meu ego”, observa.

Em São Paulo, após a operação no Marrocos — cada um removeu duas patas, para deixar de ser centauro —, Tita comete um ato falho no restaurante tunisino Jardim das delícias (mesmo nome da pintura de Hieronymus Bosch, de 1504). “Fez um movimento, o bico de sua bota raspou-me o joelho”, Guedali o descreve. “Como se fosse uma mensagem, uma advertência das patas, dos cascos: não nos esqueçam, estamos ocultos, disfarçados, mas continuamos aqui.”

“Que psicólogo vai entender nosso caso?”, questiona Tita. Ora, Freud explica; ou melhor, Jung (com seus arquétipos, inconsciente coletivo, mitos, símbolos, sombra, sonhos).

Correr, galopar
“Não falarei dos cavalos internos que galopam dentro de nós — não sei se existem”, Guedali nega, silencia-se. Não obstante, do cavalo o homem carrega o gene ancestral (o instinto, a pulsão) de galopar e correr.

O melhor amigo Paulo aconselha: “Corre, rapaz, te esforça. Não é só pelo exercício; é pelo desafio também. Vida sem desafio não vale a pena”. Ele reitera: “Eu te diria, Guedali, que correr é a coisa mais importante da minha vida. Depois da família, claro. E dos amigos”. Quer dizer, depois dos laços sociais — como esses que se observam entre os casais no romance de Scliar.

Joel, também amigo, confessa à esposa em uma reunião do grupo: “Gosto muito de andar a cavalo; só que não posso fazer aquilo que tenho vontade. Porque, se eu pudesse galopar, Tânia, tenho certeza de que o meu mau humor desapareceria”. Por sua vez, o médico marroquino suspira: “Galopar pelos campos… Sei, é um apelo ancestral. Mesmo eu, que apenas pratiquei um pouco de hipismo quando jovem, sinto às vezes essa fascinação”.

Nesse sentido, a tecnologia atrofia o corpo e o desejo: “O uso do motor a explosão no transporte e a mecanização da lavoura tornou-os [os cavalos] dispensáveis como força de tração”, explica Tita. “Não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas sobre a natureza”, alerta o marxista Friedrich Engels em uma das sete epígrafes de O centauro no jardim.

Pai de gêmeos, Guedali manifesta um sintoma psicossomático nas patas: “Nunca sofri tanto de câimbras como naquela época.” Sente-se preso. “Brincávamos de cavalinho: eu de quatro, os dois no meu lombo, eu saía a galopar”, ele conta. “Não, não galopava. Engatinhava.”

Ser humano, cavalo alado
Ser mitológico encarnado, o centauro de Scliar sonha em ser humano (“queria ser gente”), mas também sonha com “o cavalo alado, a bater as grandes asas” (“que, segundo certos místicos, seria uma espécie de anjo da guarda dos centauros”) — não sabemos se Guedali é concebido por essa espécie de Pegasus.

De nascimento no sul do Brasil até a cirurgia no Marrocos, o cavalo alado persegue-o em sonhos e visões. Dentro do avião com destino a Porto Alegre — após a operação —, ele observa aliviado, ao lado de Tita: “Nuvens, sim, e algumas de formas estranhas, lembrando animais. Mas cavalo alado, não”. (Na mitologia antiga, os centauros são filhos da Nuvem.) Após o voo para Congonhas, em São Paulo, comenta indiferente, também com a ex-centaura: “Se o cavalo alado nos seguiu ou não — não sei. Nem uma só vez olhei para fora”.

“[…] onde é que estão os nossos sonhos”, pergunta-se Paulo, o melhor amigo, numa conversa entre os dois (ele se refere a si próprio e à esposa Fernanda, mas o questionamento vale para Guedali).

Duplo, sombra
“Não quero nada que me lembre o passado”, declara o ex-centauro, a certa altura. Com a cirurgia e o sonho o que ele faz é justamente “escamotear sua parte equina” (e divina), as quais retornam como um duplo recalcado ou uma sombra na figura do jovem centauro pelo qual se enamora Tita. Nesse sentido, ele observa: “Nos sonhos começam minhas inquietudes, mas neles não terminam”.

Seu duplo é inocente e comovente: “[…] para que preciso de amigos, se pergunta (e mais tarde: para que preciso de namorada?), se tenho um pai e uma mãe tão bons?”. Aparentemente, ele não necessita de médico ou psicanalista: “Mas não quer se operar, não quer ficar bom? Não. Não se considera doente, não precisa de operação alguma: é diferente, só isso”.

Diante da revelação, Guedali se arrepende. “— Quero me operar de novo. Quero voltar a ser centauro, doutor”, comunica ao cirurgião marroquino. Depois fica em dúvida: “O médico bem poderia ter separado o real do simbólico”. Na clínica, ele ainda se apaixona pela esfinge, “uma companheira do inconsciente coletivo” que “quer transformá-lo em homem-leão” (um “delírio mitológico”, segundo sua expressão).

“Nós, os médicos, somos uns céticos”, afirma o cirurgião (a ironia é que Moacyr Scliar era médico e criou essa história fantástica).

Biografia
Frustrada a operação, Guedali regressa a sua terra natal e busca alguma resposta ou sentido para sua condição irremediável na sua ancestralidade, seu nascimento e sua infância. “[…] quem eu era: um centauro aleijado, privado de suas patas? Um ser humano tentando libertar-se de suas fantasias?”, questiona-se.

No fim, é como se ele fosse o autor de O centauro no jardim. Em vez de contar oralmente sua história de vida, começa a rabiscá-la no Jardim das delícias, durante seu aniversário de 38 anos (“idade de amadurecimento, mas também de vigor”). “Melhor ficar calado”, Guedali escreve. “Melhor rabiscar: agora está tudo bem [segunda frase da abertura do romance].”

Na mesa com os convidados, o que Tita faz é censurar, reprimir a biografia do centauro? Ou elaborá-la e ressignificá-la? (Como se dissesse a ele e a si mesma que “tudo não passou de um sonho, um pesadelo!”) A circuncisão, por exemplo, é uma passagem modificada: “[…] o mohel, velho alcóolatra, estava passando por uma fase de alucinações. Chegando à casa viu não uma criança normal, mas sim um menino com patas de cavalo”; Seja como for, uma ficção absurda soa mais convincente — visto que ainda é plausível, verossímil — que uma realidade fantástica-mitológica. Em O centauro no jardim, “o mito do Centauro, homem-cavalo, irreal do ponto de vista fisiológico, torna-se, do ponto de vista psicológico, uma realidade”, conforme o Dicionário de mitos literários.

A metamorfose
Como Grete, irmã do “monstruoso inseto” Gregor Samsa (A metamorfose, de Franz Kafka), Débora — irmã mais querida do centauro Guedali — toca violino e o fascina com o instrumento. “Pela janela espio, extasiado”, ele conta. A capacidade de as criaturas se comoverem com a música é um sinal de que conservam sua consciência humana.

No Roda Viva com Moacyr Scliar, de 2010, Manuel da Costa Pinto, crítico literário e apresentador da TV Cultura, comenta:

O centauro no jardim é a sua A metamorfose, digamos assim. [Scliar concorda com modéstia.] No sentido de um ser cujo estranhamento naquele lugar ou cultura se materializa a partir de uma narrativa que é alegórica, fantástica etc.

A inadequação é uma sensação que o filho do imigrante tem — Scliar diz. — É aquela sensação de tu ser uma figura híbrida, como o centauro. […] Tu inevitavelmente te pergunta: o que eu sou? Sou esse que está aqui na rua ou aquele da minha casa? E tu te sente um duplo; uma mistura de coisas.

O centauro no jardim
Moacyr Scliar
Companhia das Letras
238 págs.
Moacyr Scliar
Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1937. Com O olho enigmático (1988), Sonhos tropicais (1993), A mulher que escreveu a Bíblia (2000) e Manual da paixão solitária (2009), venceu o Prêmio Jabuti. Em 2003, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Morreu em 2011.
Adriano Cirino

É jornalista graduado pela UFMG. Foi repórter trainee do Estadão e colabora com a revista piauí.

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