Somos todos loucos

Em "A camareira", Markus Orths retrata uma protagonista perturbada, incrivelmente parecida com seus leitores
Markus Orths, autor de “A camareira”
01/03/2011

Markus Orths é um perturbado mental, ainda que não seja louco. Não, muito provavelmente ele é daqueles que entendem a loucura alheia. Conhece alguns mecanismos por meio dos quais ela funciona (talvez não se pergunte o porquê da loucura surgir, mas isso pouco lhe importa) e, pessoalmente, não é louco. Mas é necessário um quê de desequilíbrio mental para criar uma personagem como Linda (Lynn) Maria Zapatek, a protagonista do romance A camareira. Isso porque Lynn é também uma perturbada mental, mas sua loucura é muito semelhante à de tantas outras pessoas que conhecemos e com quem convivemos, tanto que fica difícil achar que alguém como Lynn não exista por aí. E, até certo ponto, um pouco da protagonista está em todos nós.

O enredo de A camareira é relativamente simples na aparência. Lynn, nascida em 1975, acaba de sair de um hospício depois de seis meses de internamento. Ao invés de ir para a casa da mãe, prefere voltar ao seu apartamento de solteira. Sem dinheiro, acaba procurando o ex-namorado para pedir emprego. Ela o consegue como camareira no Hotel Eden. Até aí, tudo bem. No entanto, Lynn tem um problema com sujeira. Ela não a suporta. Assim, ela trabalha de maneira obstinada na limpeza dos quartos. Chega a deixar a unha do polegar crescer para ter uma espátula sempre disponível para arrancar alguma sujeira mais persistente.

No hotel, Lynn desaparece como pessoa e praticamente não é notada por ninguém, nem mesmo por seu namorado. Aos poucos, começa a se interessar pelos hospédes do Hotel Eden, não diretamente, mas através dos objetos deixados pelos hóspedes quando estão ausentes do quarto. Cada objeto lhe dá uma descrição mental de cada pessoa. Mais à frente, ela passa a usar as roupas dos hóspedes sobre as suas, tentando imaginar o que lhes vai pela cabeça, quem são, o que fazem. Lynn não conversa com ninguém, não tem relação alguma, e é por meio dos hóspedes do hotel que ela encontra significado para a vida.

A coisa muda de dimensão quando um hóspede chega ao seu quarto e ela ainda não o deixou. Em vez de pedir desculpas e sair, Lynn se esconde debaixo da cama. Uma garota de programa aparece logo depois, e Lynn escuta o que acontece. Para ela, o misto de segurança e risco que a sua posição lhe dá é altamente excitante, não no sentido sexual, mas no sentido de emoções que a aventura lhe proporciona. E logo isso se torna um hábito: toda terça-feira esconde-se debaixo da cama de um hóspede. Lynn não quer viver a própria vida, mas sentir a vida dos outros, refugiar-se nas emoções alheias.

Uma ponte
Se Lynn fizesse apenas isso, poderíamos estar falando de voyeurismo, mas isso seria simplificar demais. Orths quer usar o caso de Lynn para mostrar sensações e emoções que são comuns a todos nós, talvez apenas amplificadas no caso da camareira. Lynn tem medo da solidão, mas não sabe como erguer uma ponte entre ela e o resto da humanidade. Lynn quer viver novas emoções, mas não sabe como dar esses passos. Gostaria que as pessoas fossem diferentes e não consegue lidar com as decepções que todos causamos aos outros eventualmente. Tudo isso Orths consegue passar sem recorrer a longas dissertações ou diálogos extensos. Pelo contrário, é mais pela ausência desses elementos que o livro perturba mais. Temos, como leitores, a tarefa de ler A camareira e buscar em nossas cabeças um entendimento maior sobre Lynn.

Aliás, não perder tempo com devaneios só torna a leitura de A camareira ainda mais perturbadora. Orths vai marcando o passar dos dias sem descrever detalhadamente cada um deles, até porque Lynn é de uma previsibilidade atroz. Orths descreve o que importa, fala sobre o que interessa, expõe a mente de Lynn (sem julgá-la ou sugerir que a julguemos) somente quando ela mostra sua desconexão com o mundo e pronto. As frases curtas criam um ambiente tenso para o leitor, que assim participa como cúmplice dos pequenos delitos de Lynn. Para um romance, é um livro curto e de leitura rápida (a diagramação com letras de corpo grande e altamente espaçadas também favorece a pressa do leitor), provavelmente uma influência de seu trabalho como contista. Mas como tamanho não é documento, não é por ser breve que A camareira não é impactante.

Por fim, Orths consegue abordar em seu livro temas comuns nos dias de hoje. Lynn é uma das milhares de pessoas que não conseguem ter uma relação humana direta com quem quer que seja, e que prefere subterfúgios que substituam essa relação (alguém aí pensou em Facebook, Twitter etc.?). Quando está com outras pessoas, Lynn não as escuta, isola-se em seu mundo (quantas pessoas andando nas ruas não estão com um fone de ouvido?). E Lynn mostra como é possível estar bem próximo de alguém sem nunca chegar a tocar ou conhecer de verdade essa pessoa, algo que, entre nós, é cada vez mais corriqueiro.

A camareira
Markus Orths
L&PM
Trad.: Mário Luiz Frungillo
136 págs.
Markus Orths
Nasceu em 1969, na cidade alemã de Viersen. Estudou filosofia, literatura francesa e inglesa e agora vive e trabalha como escritor em Kalsruhe. O romance A camareira venceu o prêmio Telekom-Austria Prize, que integra o Ingeborg-Bachmann Prize, em 2008. Antes, seu romance Catalina (2005) há havia ganhado o Sir Walter Scott Prize de melhor romance histórico. Orths é hoje um dos autores mais vendidos da Alemanha, sendo Lehrerzimmer (ou Sala dos Professores), de 2003, o seu primeiro best-seller.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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