“O que é a vida?”, costumava questionar a seus entrevistados o saudoso Antônio Abujamra, no programa Provocações, da TV Cultura. Ante as respostas mais ou menos elaboradas que recebia, o apresentador reiterava a indagação, como que para asseverar que nem a resposta fora satisfatória, nem a pergunta parecia encerrar em si alguma outra que o fosse. E é tal pergunta que parece subsistir na profundidade latente de inúmeras obras literárias na história. Certamente é o caso de Os últimos dias de Elias Ghandour, o mais recente livro de Marcelo Maluf.
Não que a obra pretenda responder ao questionamento abujamriano. Seu escopo é diverso. Sua prosa merencória exala, no decorrer das páginas, um ceticismo tal que a custo o leitor conceberá que se trata do mesmo autor de A imensidão íntima dos carneiros, livro seminal de estreia do mesmo autor, laureado com o prêmio São Paulo de Literatura, e cuja prosa lírica e terna entretece o caro vínculo familiar entre o avô imigrante libanês e o neto. Por certo há naquela obra um ou outro episódio de brutalidade que parece estabelecer uma ponte com a mais nova do autor, mas as semelhanças param por aí.
Inclusive parece que o autor mal pode esperar para demarcar tal diferença:
O texto que eu estou dizendo agora está sendo escrito neste exato momento por um desvairado que se diz romancista (…) O autor está aqui. Já entendi, quer se apossar do meu corpo, não é? (…) por favor, volte ao seu lugar e seja apenas os meus dedos e digite a porcaria da história. Essa é a minha história, não a sua. Você já contou a sua história em outro livro. Aquele em que você fala sobre o seu avô libanês.
Essa é uma das interações um tanto risíveis que ocorrem durante a narrativa, doravante não com o autor da obra, mas com “o público” que está diante do personagem-título, numa plateia imaginária. Explica-se: a narrativa de Os últimos dias de Elias Ghandour não se configura convencional, mas um produto artístico da pós-modernidade. É uma obra formalmente inclassificável, apoiada em dois planos de enunciação: no primeiro — presente — o personagem título já octogenário está em um palco “encenando” um monólogo, e o conteúdo deste, que é o segundo plano enunciativo, é o relato de sua vida, da infância à juventude dos sonhos sepultados, sua meia-idade com uma vida sexualmente ambígua e com o comércio bem-sucedido que herdara de seu pai, até o crepúsculo de sua existência.
Uma existência à deriva
Elias é filho de imigrante libanês e mãe brasileira. Com aquele tem a relação típica de um pai e filho, cuja comunicação é escassa. Com sua mãe, a relação é mais terna, quiçá até demais, dúbia, cheia de nuances. A relação com sua irmã não é menos peculiar. Contudo, todos morrem um tanto prematuramente durante a jornada de Elias.
Ainda na mocidade, o protagonista nutriu sonho profissional de firmar carreira como ator teatral, como seus dois amigos. Estes o conseguem, embora destinados a uma vida miserável de penúria e obscurantismo, enquanto a sina de Elias será outra: “coagido” por sua mãe, após o falecimento do pai, assume o comércio de roupas paterno, dando-se muito bem, prosperando, e deixando ao filho de um casamento sem amor este legado.
Já divorciado, vive recluso numa casa interiorana retirada, onde passara parte de sua vida com seus pais. É lá que lembranças e fatos anormais emergirão de sua consciência, ou talvez além da consciência…
A princípio, vislumbrando esse resumo e mesmo o título da obra, o leitor poderá esperar algo em torno de A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói, ou mesmo Morangos silvestres, filme de Bergman. Contudo, a obra parece uma estranha síntese de Hereditário, filme de Ari Aster, com Quando eu era vivo, de Marco Dutra, em meio a um leve teor de Pirandello. Há que se dizer, no entanto, que nenhum desses elementos é trabalhado plenamente, ou seja: “as máscaras” usadas pelo protagonista em sua vida social, a que se adaptou para sobreviver, ou o ocultismo da mãe e seus ritos envolvendo o filho, entre outros fatores, são elementos en passant, funcionais enquanto motivos que movimentam a história e elementos constitutivos da psique de Elias, mas não vão além disso. Isto é: o leitor não terá a oportunidade de mergulhar satisfatoriamente na existência dessa figura materna, ou na da irmã, ou entenderá a natureza das aspirações artísticas do protagonista, ou por que se acomodou à máscara que ficou “pegada à cara”, como já versejou Pessoa.
Óbvio que nem todos os elementos de uma narrativa devem ser explicados, em detrimento da sugestão, mas o leitor, após trilhar os caminhos e, ao cabo, olhar para trás, provavelmente perceberá que alguns elementos demandariam maior aprofundamento.
Talvez o fator mais peculiar é esse estranho ceticismo do protagonista. Um ceticismo inabalável, mesmo que diante de fatos tão sobrenaturais ocorrendo no seio familiar, ou até no palco em que encena sua trajetória.
Algumas vezes, fomos visitados por um bode que dançava com ela (…) depois de sua morte, encontrei um caderno com suas anotações e descobri que mamãe era praticante de alguma espécie de feitiçaria (…) também nunca fiz questão de investigar.
A marca de seu ceticismo está, de certa forma, em sua obsessão na peça Macbeth (cujo título cita constantemente), de Shakespeare, na qual essencialmente o livro está calcado, não obviamente no que há de fantástico nela, mas na fala essencial do infausto rei já no desfecho da peça (daí o fato de que quase todos os capítulos do livro fazem alusão a sons, e como se não bastasse, a desfazer de vez toda a sutileza, a dita fala constar do livro em questão):
A vida é apenas uma sombra errante. um mau ator a se pavonear e afligir no seu momento sobre o palco (…) É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada.
Talvez o registro venha mais de uma insegurança de que a relação entre as obras não seja captada pelo leitor ou fundamentada no desconhecimento deste da obra shakespeareana, isso porque o contexto em que a fala é citada (uma conversa intelectual entre Elias e o amante Hassan, este escritor, cujo papel na obra, infelizmente, não vai além do supracitado) soa um tanto gratuito.
Também um tanto breve, mas bem mais trabalhada e digna de nota, é a relação de Elias com seu filho, expressivamente um reflexo da relação daquele com o respectivo pai. Na escassez de comunicação e estranhamento de tais relações, o leitor reflete em como os elos humanos são carentes de coerência, de sabedoria. O filho ignorado ou afastado não aprende com a experiência sofrida, e reproduz o tratamento, por sua vez, a seu filho, e assim o legado da frieza e estupidez humanas vai se propagando, perene, na existência dos homens. O filho de Elias, contudo, não se acomoda à condição de vítima: trata este também de tomar sua parte na miséria humana, cobiçando o comércio bem-sucedido do pai, herança do avô.
Essa análise mundana, isto é, da conduta humana, o melhor do livro, deságua, após um ocorrido inesperado, em águas metafísicas (ou não…) que apontam ou para o poder influenciador de caráter espiritual, ou para a pura e simples esquizofrenia. O leitor decidirá.
Por fim, a escolha formal da narrativa, por si muito interessante, tem como efeito colateral a lógica problemática do plano da enunciação. Como dito inicialmente, Elias está num plano enunciativo (o presente) relatando sua história já vivida (o passado), ao público (e a nós), contudo ao final da obra, os planos se embaralham, de maneira que a lógica entre eles fica comprometida, e mesmo o leitor mais afeito a narrativas experimentais ou de fluxo da consciência poderá questionar-se o que está ocorrendo, e quando.
Todavia, em meio a isso, temos um autor que maneja bem a linguagem: “Há uma vida, eu sei, que acontece no subterrâneo de nós, no reino abissal de nossas fantasias”.
Ao fim, ainda que menos feliz que a obra que o consagrou, a presente ainda alimenta, entre altos e baixos, interesse não pequeno, sendo experiência rica e forte.