Solidão povoada

Nos contos de “Você verá”, Luiz Vilela aborda a dificuldade da comunicação humana
Ilustração: Luiz Vilela por Osvalter
03/06/2014

Qual o papel da crítica ao se deparar com a obra de escritores como Luiz Vilela? Ler cada linha, penetrar nas vielas de sua ficção e saber que o bom leitor é, antes de tudo, um eterno aprendiz.

Você verá reúne contos distintos entre si, escritos em diferentes momentos. É uma boa amostra do conjunto da obra de Vilela, tanto do ponto de vista temático quanto estético. Nesse sentido, uma breve apreciação de cada um dos onze contos pode ser um caminho para iniciar nossa leitura desse livro e estimular a dos demais.

Ruído
Zoiuda fala da relação de um homem com nada mais nada menos que uma lagartixa. Na solidão do protagonista em seu apartamento, ela surge com uns olhos enormes para lhe fazer companhia. O narrador em terceira pessoa segue os passos do personagem em seu cotidiano, desde o primeiro encontro com a companheira, numa sexta-feira, ao final do dia: “As prostitutas e as estrelas, as lagartixas também são seres da noite e só nela, ou de preferência nela, se mostram”. O olhar de Zoiuda chama atenção como promessa de comunicação e uma impossível troca de sensações. “E ficaram os dois se olhando, ele pensando se haveria naquela cabecinha algo como o pensamento, algo que…” A lagartixa é mais que um animal que invade a cozinha. É uma presença que ocupa um lugar no vazio da vida do personagem.

Em Era aqui, o narrador onisciente tem o discreto papel de introduzir e dar um fechamento à história. O conto se desenvolve através do diálogo entre o personagem e a namorada em uma praça onde ele passou dias memoráveis na infância. É um passeio não apenas ao lugar físico, mas ao espaço simbólico e afetivo da memória. A mulher, solidária, partilha a viagem, mas sem conseguir visualizar as imagens criadas pelo parceiro de um tempo-espaço que se foi. Se algo ficou, são ruínas, lembranças, pedras, destroços: um campinho de futebol, a bola, o gol ressignificados pelo protagonista, entre passado e presente, entre os dois personagens, entre histórias de amor.

A partir do diálogo entre populares sobre um caso dramático e surpreendente, Vilela desenvolve O que cada um disse. Como o título aponta, é o disse me disse no qual a oralidade entra em cena. A rua, uma banca de jornal, talvez uma esquina são pontos de encontro da discussão da tragédia cotidiana. “O ser humano é como uma floresta: você olha de fora e a floresta é aquela maravilha; mas você entra, e lá dentro você dá com onças, cobras, escorpiões.” No espaço público, a vida privada de um sujeito qualquer ganha estatuto coletivo. Uma polifonia de vozes se instaura. São críticos, comentaristas e juízes que tecem desde abordagens filosóficas até as análises mais vulgares: “(…) pra mim o que há por trás disso, do que aconteceu, é isso aqui, olha: chifre, cara. Tá entendendo? Chifre. Daqueles bem grandes e tortos”.

Céu estrelado: um homem em trânsito para uma festa familiar na virada do ano. “Olhou as horas, quinze para as dez.” Uma resolução: “Chega de correr”. Em uma conversa ao celular, a ansiedade da mulher por sua chegada se contrapõe à sua necessidade de paz. Trata-se de um diálogo fragmentado, os ruídos da incomunicabilidade de vozes sem sintonia que caracterizam os personagens. Desacelerar, estar só com o céu, com a noite. A família que o esperasse.

O cotidiano familiar também está em pauta em Todos os anjos, através do diálogo de um pai com seu filho pequeno. A conversa se dá no caminho da igreja para casa: o menino vem do catecismo e o pai, nada crente, pela linguagem afetiva procura entender e trocar experiências, buscando cumplicidade. Perguntas e hipóteses de respostas, crenças e ficção ajudam na comunicação entre seres tão diferentes, irmanados pela sensibilidade viva de laços amorosos. Na fala do menino, um paradoxo de conciliação: “Eu acho que anjo existe, mas existe só de mentirinha.”

O bem é um conto mais extenso que os demais. O narrador-personagem esclarece logo nos primeiros parágrafos: “O Bem, o Bem do título — que não tem nada de etéreo, nem chega a ser sublime — é simplesmente um conhecido meu. Aliás, nem Bem se chama: ele se chama Astrogildo. Bem é apelido”. Bem é um desentupidor de privadas que leva uma vida simples, muito diferente daquela do narrador. Este se impressiona pela maneira do outro lidar com tantos problemas, que envolvem a mulher, os filhos, o cachorro, o gato e a precariedade econômica. A trama é entrecortada por diálogos bem elaborados e algumas digressões que ajudam a construir os personagens. Nada há de excesso. Apesar da aparência de trivial conversa fiada, tudo fortalece o propósito de garantir espontaneidade e fluência à narrativa.

Ausência
Em Quando fiz sete anos, novamente a memória remota é acionada. O protagonista recorda um presente de aniversário que ganhou do avô: uma bússola, símbolo de orientação, direção acertada. Mas para o menino o presente não tinha funcionalidade nem sentido. A dificuldade de expressão do avô e da comunicação entre ambos impediu que o presente fosse acolhido e, mesmo, compreendido. As meias palavras e o silêncio interceptaram o entendimento mútuo. Depois de um tempo, o personagem volta a ver o avô, que agora dorme, e marca sua presença através de uma cadeira posta onde costumava sentar. “‘Acho que ele vai entender’, pensei. Então, com o mesmo silêncio com que chegara, eu fui embora.”

A história de Corpus é contada através de vozes que comentam entre si imagens de corpos retirados de um acidente de avião. O horror da morte toma diferentes proporções a cada fala, muitas descabidas, dos observadores virtuais do desastre. “Olha esse aqui: tripas. Que coisa horrorosa.” A sensibilidade maior dos curiosos é de alívio: morreu?, antes ele do que eu. Horror, piedade, compaixão e alívio são aspectos importantes da trama. O computador, com sua lente virtual, propicia a distância necessária para a leitura das imagens se tornar suportável. Tudo que precisamos saber encontra-se nos diálogos, e a narrativa parece se contar, dispensando um elemento narrador específico.

Noite feliz é um monólogo no qual o protagonista vai reunindo lembranças de noites felizes de Natal em família. Como num fluxo de consciência, imagens e falas entrecortadas constroem o texto. O passado narrado e povoado de fantasmas e referências conflita com o presente de um homem só na noite: “Nunca houve ninguém tão só. Nunca, nesse mundo, alguém se sentiu tão só. (…) nem se eu estivesse lá numa cratera da Lua ou no deserto em Marte. Se o telefone tocasse, talvez…”.

Mataram o rapaz do posto tem ares de crônica, título de uma notícia jornalística e conteúdo do cotidiano urbano. Numa rua pacata da cidade, um rapaz foi baleado. Cria-se o alvoroço: fuxico para todo lado, hipóteses de crimes, assaltos e assassinatos. Até que um elemento surpresa entra em cena e desconstrói o teor trágico da narrativa, para torná-la quase cômica.

Finalmente, o último conto dá título ao livro. O personagem narra seus últimos dias em visita a Brasília, quando a cidade contava apenas dois anos desde a inauguração. A frase “você verá” vem de um dono de bar entusiasmado com a nova capital federal: “‘O futuro está aqui’, ele diz enchendo o peito: ‘um novo país está nascendo nesta cidade’”. Depois de descrever esse novo país, carregado de um desejo coletivo de paz e prosperidade para todos, conclui: “Eu talvez não verei — mas você, que é muito mais novo do que eu, você verá”. Talvez esse único conto datado abra uma interrogação sobre as utopias, os sonhos projetados para o futuro e o presente contexto da nossa capital federal e do nosso país, mais de cinquenta anos depois.

Prosa lapidada
Em entrevistas, Luiz Vilela ressalta que escreve o que quer, como gosta, com simplicidade. Os diálogos são reconhecidamente um dos pontos fortes de sua ficção, e além da fluidez com que são desenvolvidos, são elementos mais importantes do que possam parecer: funcionam para construir cada personagem a partir de suas ações, dicção própria e intimidade particular. Sucintos, sem maiores rebuscamentos, aproximam-se da linguagem coloquial, tanto na perspectiva da oralidade quanto na busca de tocar a realidade mais palpável. Nota-se, entretanto, um trabalho de artesão nessa construção. São diálogos burilados, pedras brutas lapidadas à exaustão. Talvez resida aí a reconhecida excelência e força com que a narrativa tece a trama, entre banalidades e boas surpresas.

Quanto aos temas desenvolvidos, esses onze contos envolvem questões já abordadas em outros livros do autor e, curiosamente, com novos enfoques. O aparentemente banal ganha gravidade na tragédia cotidiana de um espaço urbano, às vezes violento, às vezes solidário para com as dores coletivas. O passado assombra o presente ou lhe garante novos sentidos através do trabalho de reconstrução da memória. A rua, a localidade, a casa e a intimidade problemática dos laços de família estão na ordem do dia. O homem, na solidão da sua humanidade, aproxima-se do animal e do outro, tentando preencher vazios ou trocar sua perplexidade entre o sonho e o desencanto, frente à vida e à morte.

Você verá
Luiz Vilela
Record
128 págs.
Luiz Vilela
Nasceu em Ituiutaba (MG), em 1942. Formado em Filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais, estreou na literatura aos 24 anos com os contos de Tremor de terra, pelo qual recebeu o Prêmio Nacional de Ficção. É autor de diversos contos, romances e novelas premiados e traduzidos para outras línguas, como Perdição, O inferno é aqui mesmo, O fim de tudo, Tarde da noite, entre outros.
Vilma Costa

É professora de literatura.

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