Solidão e solidariedade em concerto

A fragmentação é o caráter predominante nos contos de “Vozes num divertimento”, de Luci Collin
Luci Collin, autora de “Vozes num divertimento”
01/09/2008

O livro Vozes num divertimento, de Luci Collin, é uma coletânea de 20 narrativas, que sob diferentes aspectos se alinham ou se sobrepõem em um diálogo de vozes, ao mesmo tempo dissonantes e solidárias na busca de uma problemática comunicabilidade. Apresentadas no índice do livro como A linha das narrativas, nada têm de linear na acepção da palavra. O caráter predominante da estrutura desses textos é a fragmentação, tanto do ponto de vista formal, quanto temático. Anunciado como um livro de contos, abre uma discussão sobre o fazer literário, suas amarras, seus códigos canônicos, suas potencialidades e suas limitações.

A última moda em aquis, texto que abre a coletânea, chama a atenção para um projeto literário de construção narrativa ligado a um tempo presente do “aqui” e agora, no qual a precariedade de sentidos contribui para “o nosso descontentamento desespero pedra que atinge em cheio o vespeiro atravessar a rua rica de sinais fechados…”, sinais de trânsito, sinais de signos que precisam ser abertos para cumprirem seu destino.

Esta travessia não se dá impunemente, busca desautomatizar a leitura fácil, quebrar regras, apontar vazios e silêncios a serem visitados, enquanto espaços de recriação e experimentação de linguagens. “… por que não pensar que tudo aqui não é aquela cena do precipício não é jogue-me suas tranças e com certeza um prefácio é a planta do edifício é o aviso aos naufragantes é o modo de desfazer aquela receita de bolor…” Tudo aqui pode ser pensado como aquela cena do precipício e seus abismos, em contradição com a planta do edifício que se presume bem estrutura ou alicerçada. De qualquer forma, são paradoxos que exploram a ambigüidade e apontam para a ruptura com as receitas de bolor de uma suposta tradição do fazer literário. Esse primeiro conto, com cerca de três páginas e meia, sem qualquer sinal de pontuação, sofre cortes que o subdividem em seis trechos, cinco dos quais se iniciam com a última letra da palavra que os antecederam, cada uma dessas letras situa-se sozinha numa linha que separa cada fragmento. Além disso, a palavra “aqui” perpassa repetidas vezes todo conto-prefácio, anunciando as marcas da temporalidade e espacialidade que são e serão dramatizadas durante todo livro: o contexto contemporâneo de múltiplas tendências e possibilidades expressivas.

Crítica
Independentemente da pretensão da autora de efetuar uma “regressão” ou regresso à modernidade heróica através de escolhas estéticas similares às que os nossos vanguardistas inauguraram, essa produção situa-se num outro campo, no qual a originalidade não é mais aspecto privilegiado, nem mesmo possível. Como tantos outros escritores contemporâneos, Collin não está sozinha contra a correnteza. Dá continuidade à tradição modernista, implementando a radicalização das experiências de linguagens em sua obra, potencializando recursos e novos instrumentos do nosso tempo. E ao realizar isso, estabelece uma crítica subliminar ou explícita a outros campos que caminham em direção contrária, ou seja, contentam-se com velhos modelos, e neles fincam suas âncoras.

O texto-prefácio já anuncia muitos dos aspectos que comporão os demais. Entre eles: os experimentos, jogos e articulações sintáticas e semânticas com a língua, com as palavras-pássaro, arredias, não confiáveis, mas, por isso mesmo, bem sedutoras. A relação que estabelece com outros tipos de linguagens, predominantemente a musical, já se revela a partir do título do livro. São vozes da linguagem poética, num sentido mais amplo, e, portanto, verbal, a se manifestarem num divertimento, “pequena opereta intercalada com danças ou composição leve, episódica e lúdica”, como o termo é definido na língua dicionarizada, citado no penúltimo conto. Este é formado por diferentes fragmentos, sob pontos de vistas variados de leitores, desde simpáticos e entusiasmados críticos, passando por um aluno adolescente obrigado a ler, até chegar aos depoimentos do pai e da mãe da personagem-autora. O trecho referente a uma doutora musicóloga refere-se ao título do livro: “…possivelmente foi extraído do jargão musical em referência a pequenos entreactos, compostos de apresentação tanto musical quanto dançada que se finalizam em representação dramática”. “Divertimento”, a partir dessa definição, permite ampliar o campo musical para a linguagem corporal da dança e do amor e, por sua vez para a representação teatral. Daí remete-se para a construção das imagens visuais, pictóricas, no jogo de luz e sombra no qual alguns contos são montados, por exemplo, Ilusão de sombra, com um Miguelangelo como personagem ou Noir, que discute os aspectos obscuros do ser e da linguagem:

A minha consciência nua absurda crua primitiva inventa sorrisos únicos inventa melodias inventa exaustões e estrelas e a noite acorda a noite faz-se ver. As luzes morrem mesmo aquelas que se contam em bilhões de anos…

Em Qwando percebe-se a manifestação compulsiva de um eu lírico, além de cortes sintáticos que descaracterizam a narrativa enquanto conto, tradicionalmente compreendido. Trata-se de uma forma muito peculiar de montagem, fragmentos de poemas, letras de diferentes tipos, corpo em movimento buscando ou deixando escapar palavras na dança do amor:

quando faço seu corpo o meu corpo é feito arrebentação das ondas o corpo seu quando concebo a minudência planejo faço uma ourivesaria uma incontrolável maré vazante […] cada suspiro oceanos inundações quando ali as delicadezas vertem pela superfície vejo os arrepios correndo pela pele e ali eu faço no corpo seu de mim artífice de uma maravilha…

Amor e erotismo, como sugere Octavio Paz, são duas chamas que se deflagram no contexto da nossa humanidade, uma azul, uma vermelha, mito e cerimônia, como faces de uma mesma moeda. Dentro da perspectiva moderna, alma e corpo estão irremediavelmente unidos em ato de representação. O discurso amoroso e a poesia que o sustenta têm a forma e o conteúdo também interligados e com uma função primária bastante específica: suspender a comunicação, transcendê-la, sugerindo a presença do indizível como recurso expressivo. Visionário, também sob a direção de uma voz lírica em suposto diálogo com um outro, objeto de amor e desejo, problematiza isto: “E o telegráfico eu tento transformar em barroco e mesmo assim falta muito, o mais minudente trabalho de ourivesaria é longe de ser o inefável que se conseguiu entre abraços“.Atente-se aí para os termos em negrito. Durante todo texto, algumas palavras ou frases se destacam e podem ser lidas em separado como se versos de um poema fossem enxertados na narrativa, digamos, uma força que remete à inserção de textos sobre textos, vozes sobre vozes, formas sobre formas. 

Muita ironia
Cinco atos (mentiraria), apesar da apresentação em prosa narrativa, discute com muita ironia a escrita usando referências intertextuais e temáticas ligadas ao teatro. Comédia e farsa são mais que gêneros, viram questionamento e interrogações, divertimento. Explorando a ambigüidade, em sua maioria os textos são recheados de humor, cada um, a sua maneira, encena situações e emoções tão diversas quanto as formas com que são apresentados.

Modernas estratégias de expressividade contemporânea – três observações tecno-científicas segue o esquema de um texto acadêmico, incorporando todas as exigências formais do modelo, com resumo, palavras-chaves, citações teóricas, conclusão e, inclusive, referências bibliográfica. Amâncio Theodoro de Barreto,o nome do autor do ensaio, aparece no alto da página com uma nota de rodapé definindo-o em uma breve biografia. Assim o texto é apresentado:

RESUMO: O presente ensaio, com base histórico-cognitiva e opcional, visa lançar luz sobre três estratégias modernas de expressividade contemporânea, todas exemplificadas com excertos colhidos in vivo por meio de pesquisas topolingüísticas realizadas em ambiente científico comprovado.

Longe de simplesmente expor o resultado de uma pesquisa científica sobre os estudos lingüísticos e literários, o texto figura no meio da coletânea como uma divertida brincadeira sobre as exigências desse tipo de saber e sua maneira de dizer e se instituir. Para dar chance de fala a tantas vozes é preciso lançar mão de uma variedade de formas e recursos surpreendentes. Estes não são obra de criação espontânea, não se encontram aí por acaso, como modestamente diz acreditar a escritora. Fazem parte de um projeto, sustentam um amadurecimento de produção que dizem respeito, além da vontade e do talento autoral, a um contexto histórico e mercadológico que estimula e, de certa forma, absorve propostas como esta.

Sob outra perspectiva, o fato desse conjunto de narrativas compor um livro de “contos” pode criar um estranhamento. Isso porque há toda uma expectativa no repertório de conhecimento do leitor pelo desenrolar de um enredo, com suas tensões, clímax, e seqüências lógicas de tempo e espaço, além da construção coerente de personagens. O que ocorre aqui é que ao se colocar em xeque as formas convencionais, sugere-se uma reorientação de leitura. Como questiona a autora em entrevista: “Se o leitor é hábil o suficiente para combinar, reagrupar, editar um enredo aparentemente disparatado, por que menosprezar, ou desconsiderar toda essa agilidade do leitor enquanto editor do texto?”

O que parece estar sendo buscado é uma cumplicidade autor-leitor, enquanto editores de textos. Nesta direção, propõe-se a partilha da experiência criativa, através dos hiatos ou vazios espalhados pelo livro. O que a estética da recepção já sinalizava, pode agora se viabilizar de maneira efetiva a partir de uma divisão ou alternância de poder. O escritor não exerce sozinho o poder de invenção, confia ou espera que o outro, o leitor, faça a sua parte, interaja, construa sentidos, aparentemente, inacessíveis. Apesar de deter ainda o controle de sua produção, o que a proposta apresenta de ousada é se dispor a correr o risco de não retorno, ou seja, o efeito estético pode paralisar o leitor, perdido em tantos vazios e descaminhos. O que importa é que Luci Collin paga para ver, aí reside a força do desafio.

Elementos-surpresa
O que pode faltar em narratividade na ação e, de certa forma, descaracterizar a existência ou importância de um enredo na maioria dos contos, excede em construções repletas de elementos-surpresa que pretendem gerar, segundo Collin, “as emoções do inusitado”. A lógica de construção da trama e dos personagens é outra. E a autora esclarece: “Se você usar como tema, por exemplo, a solidão, transformá-la em personagem do seu conto – não uma pessoa experimentando a solidão, mas a própria solidão, ou o medo, ou a saudade, ou a escuridão…” Isso pode ser observado em Kosmic Blues, por exemplo:

Ouvir vozes quando é um solo de guitarra é solidão. Esperar que a porta se abra. Suspirar é solidão. Não falar em corpo. Repetir o mesmo gesto. Repetir… As mãos que envelhecem, os toques melhores que aguardarão para sempre. A folha tombar no outono é solidão.

Deste modo, é fácil antever-se que tais textos, como os seus personagens, não comportam estruturas rígidas. São, por sua natureza, escorregadios e múltiplos, não poderiam nem precisariam se enquadrar numa linha reta de tempo e ação. Feitos sobre papel e tinta, de palavras e ruídos, a língua escrita, que os expressa, em última análise, pede socorro a outras formas de linguagem para se fazer representar. O Kosmic Blues é “ensaiado” por muitas vozes, sob a regência de um maestro que baixa a batuta, e espera sinais num “desafinar na noite de estréia. Sob as luzes. Desafinar em todas as noites subseqüentes”. Música, representação, luz, imagens, solidárias em sua solidão, constroem essa personagem que é, antes de tudo, uma alegoria que ajuda a estabelecer a discussão desse fazer literário. O que é “a mecânica da representação” artística, senão solidão? Senão busca de ruptura através da partilha do poder e da perplexidade da criação?

Para se fazerem representar, tais personagens, textos e temáticas exigem a variedade de sons, afinados ou desafinados, cores, luz, escuridão, percepções de expressão poética, o riso da comédia, as surpresas ou sustos do drama e a pseudo-racionalidade do ensaio. A discussão metaficcional é marca contemporânea, o próprio texto reflete sobre suas produção e recepção. Entra em cena a obra ensaio, tentativa, erro, reescrita, repensar, criar, recriar, eterno rascunho. E apesar de tudo isso, ou apenas por tudo isso, vem repleta de possibilidades, prenhe de sentidos no aparente nonsense que dramatiza.

LEIA O PAIOL LITERARIO COM A AUTORA LUCI COLLIN

Vozes num divertimento
Luci Collin
Travessa dos Editores
157 págs.
Vilma Costa

É professora de literatura.

Rascunho