Soletrar toda uma vida

Resenha do livro "Soletrar o dia", de Rosa Alice Branco
Rosa Alice Branco, autora de ‘”Soletrar o dia”
01/05/2004

As sinestesias, correspondências e analogias já têm 150 anos de história em nossa tradição poética, desde Baudelaire. Ao relacionar informações dos diferentes sentidos, emoções e sentimentos, o poeta de Correspondências acreditava em relações secretas entre as coisas, a serem reveladas pelos poetas. Assim inaugurou um ciclo, aquele do primado do pensamento analógico na poesia, contraposto á lógica dedutiva, do qual fazem parte simbolismo e surrealismo, e que está longe de esgotar-se. Assim como não se encerraram as possibilidades oferecidas à criação poética através das imagens, entendidas por Pierre Reverdy como aproximação de realidades distintas, sendo tanto mais fortes e justas quanto mais distantes forem as realidades aproximadas; portanto, como negação dos princípios lógicos da identidade e não-contradição.

Um exemplo da continuidade e ao mesmo tempo da renovação e revitalização da poética das analogias e correspondências é dado por Soletrar o Dia, de Rosa Alice Branco. Demonstrando a vitalidade da poesia portuguesa contemporânea, integra uma obra extensa, composta por sete livros publicados em Portugal, além de traduções e edições em outras línguas, e que vem recebendo merecido reconhecimento da crítica.

Rosa Alice Branco escreve em versos longos, quase prosa, com um ritmo pausado, como se estivesse falando, conversando com o leitor. Seu modo predominante de expressão é a imagem. Não por acaso, em um dos poemas de Soletrar o Dia, homenageia Malcolm de Chazal, mestre moderno da escrita em imagens feitas de aproximações de aparentes contrastes, da analogia e do poema em prosa.

Assim, prosseguindo essa dicção, Rosa Alice Branco diz que Caminhamos na respiração do outro. Nada sabemos. A ignorância como uma flor do deserto. Em O sorriso das pernas, cria através do encadeamento de imagens, resultando em algo como deixo um nenúfar à porta/ para quem chegue com o fardo da noite. Um copo para a minha sede. E declarar que Dentro de mim/ a pele da cidade penetra o corpo dos ciganos/ em vôo rasante sobre nada.

Nesses trechos, vislumbra-se uma filosofia ou uma mística pessoal, um sentimento de harmonia universal, conforme já observado por outro ensaísta (por Maria Irene Ramalho, em um ensaio na edição portuguesa de Soletrar o Dia). Relaciona as esferas dos símbolos e das coisas, do corpo e do mundo inanimado – possibilitando Caminhar com o chão a roer os pés, ou Atravessar/ a pele até o outro lado, e aquelas do sujeito e do mundo objetivo: Agora sou o dia.

É interessante o sentido do significante pele na poesia de Rosa Alice Branco: sugere aquilo que deve ser ultrapassado, um limite precário ou fronteira provisória, além do qual se instaura o poético, e se chega ao âmago do mistério. Assim, refere-se ao amor como o acordo ortográfico que só existe/ no fundo da pele. A experiência poética, amorosa, do maravilhar-se ou deslumbrar-se, sempre equivale a ultrapassar as fronteiras do “eu” e, metaforicamente, os limites do próprio corpo.

Dotada de sólida formação filosófica e nos estudos da linguagem e dos signos, especialista em Leibnitz e em Berkeley, Rosa Alice Branco escreve sobre a própria linguagem, e interroga a palavra, conforme já havia sido observado com precisão pelo notável crítico português Oscar Lopes. Mas, mesmo com essa bagagem teórica, ela nunca é árida e cerebral. Sua poesia é, antes, demiúrgica. A enunciação pelo poeta cria o mundo: As palavras são as primeiras a chegar, como é dito em Passos sem memória, o poema que abre o livro. Palavras precedem e configuram a subjetividade e a consciência: Antes não era eu. Nunca estava dentro/ do que sou (em Ser o que falta). Permitem Inventar a pele (outro de seus títulos), e o dia, no título do livro e neste verso: Soletro o dia que há de vir da outra margem/ da noite, e, em acréscimo, também soletrar a noite, além de fundar o amor: Soletramos o amor com a letra mais pequena de uma língua/ acabada de inventar. E a própria identidade: Deixo-me soletrar/ descalça, pois Antes não era eu. Homenageando Malcolm de Chazal, reconhece que Chazal deu um sentido plástico ao meu corpo.

Ao mesmo tempo, as coisas são signos, linguagem. A mesa é uma gaivota de escrever, e, por sua vez, A gaivota atira-se/ ao mar. Só ouço o grito das vogais/ sobrevoando a areia. Reciprocamente, a poesia é crítica ao que se apresenta ou nos é apresentado como realidade: Invento palavras para não saber. Ou então, Sempre tive problemas com o verbo ser. Nega o estável, o que é e se apresenta como fixo, e também o que transcorre e passa, pois O tempo é uma invenção recente.

Rosa Alice viaja bastante. Mas cada viagem também é metáfora, remetendo á viagem pelo mundo simbólico. Viagens, quer simbólicas ou físicas, não são apenas ocasião para descobertas, mas para a recriação do mundo, ao dizê-lo: Soletro Kairouan nesta casa vazia/ sem arcos de passagem onde abrigar/ a tua ausência. O lugar passa a existir e ter sentido ao ser dito, ou melhor, no código particular de Rosa Alice Branco, soletrado, escandido, falado em outro registro. Assim, revive e renova a experiência do maravilhar-se, quando a descoberta do Souk, o velho mercado de Damasco, é a visão de que Só um rio continuará correndo, só umas mãos eternamente vivas, só uma gota a transbordar dentro do que somos.

Desses lugares, talvez por representar o encontro de Oriente e Ocidente, de dois mundos, Granada parece equivaler ao illo tempore, à permanência da Idade do Ouro e do tempo suspenso e reversível no encantamento: Ninguém é velho/ em Granada. Descem o Albayzin, os corpos rolando/ pelas vertentes do Darro, deslizando ao longo/ das pedras da Alhambra e este contraste/ é o puro pleonasmo de ser jovem.. Estar lá permite-lhe enfrentar os grandes desafios: como dizer o tempo?.

Na série granadina, um poema especialmente revelador pode ser O gato andaluz. Há uma paráfrase involuntária com relação ao filme Um cão andaluz, de Buñuel e Dali, invertendo seu sentido. E uns tantos contrastes inesperados. Cabe lembrar que a intenção de Buñuel e Dali, ao escolherem esse título, foi insultar García Lorca, com quem haviam rompido. A resposta de Lorca à ruptura com Dali foi o auto-exílio, e a conseqüente criação do Poeta em Nova York, sua obra mais frenética e dilacerada (não estou especulando, porém baseando-me na sólida biografia de Lorca por Ian Gibson). Tomando o que Rosa Alice Branco escreve, e lendo-o sob essa ótica, vemos um inesperado jogo de espelhos: o poeta andaluz esteve em Nova York; a poeta portuguesa está em Andaluzia, na terra de Lorca: No lugar do cão, seu animal-antônimo, o gato. Poeta em Nova York é o dramático poema da separação, perda e solidão: Agonia, agonia, sonho, fermento e sonho./ Este é o mundo, amigo, agonia, agonia. Soletrar os dias é o poema do encontro, da integração e harmonia: Aceitar o dia. O que vier.

Evidentemente, isso não significa que a poesia de Rosa Alice Branco de algum modo contradiga, negue ou questione a enorme contribuição de García Lorca. Ambos, inclusive, expressam o pensamento analógico, e expressam-se através das imagens. A relação é de complementaridade. Confrontadas, mostram a extensão do universo revelado pela poesia, e como os poetas dialogam, até mesmo ao se parafrasearem, de modo deliberado ou por obra do acaso.

Soletrar o dia
Rosa Alice Branco
Escrituras
160 págs.
Claudio Willer
Rascunho