Sofríveis prazeres

“O livro dos prazeres proibidos”, de Federico Andahazi, apresenta Gutenberg como um ingênuo, enrolado e fracassado golpista
Federico Andahazi, autor de “O livro dos prazeres proibidos”
01/10/2014

Ultimamente andei lendo alguns livros de teor erótico. Da Série Sexo, da Hedra, gostei bastante tanto de Tudo o que eu pensei mas não falei na noite passada, de Anna P., quanto de A Vênus de quinze anos (Flossie), de Charles Swinburne, são excelentes exemplares do gênero — e O outro lado da moeda, de Oscar Wilde, ainda está na fila. Como precisei entrevistar a autora, também li O prazer é todo nosso, da prostituta Lola Benvenutti, que, eventualmente, tem sua carga de erotismo. Na sequência veio O livro dos prazeres proibidos, de Federico Andahazi, a “incursão mais audaz” do autor “pelo relato erótico”, segundo alguém da revista Notícias, de Buenos Aires. Como isso está descarado na capa, alguém da Bertrand Brasil concordou com a análise. Mas, sinceramente, vocês acham mesmo que esse livro vai para a estante de literatura erótica? Vocês acham mesmo que ele divide lugar com História do olho, do Bataille? Olha só, o Exorcismos, amores e uma dose de blues, a última fantasia de Eric Novello, tem uma cena de sexo que justificaria muito mais colocá-lo na prateleira sacana do que O livro dos prazeres proibidos. E digo erótico sem tentar diferenciar o gênero do sensual ou do pornográfico, hein. Olhando tudo de uma mesma perspectiva e metendo outra arte no meio, a obra não é Lars Von Trier, não é seção peitinho do Multishow, não é Emannuelle e muito menos Sasha Grey. Parem de enrolar o leitor para que consigam vender alguns volumes a mais, por favor.

Isto posto…

Naquele tempo, no pequeno mundo dos gravadores, dos calígrafos e dos ourives, espalhara-se um tipo de febre semelhante à dos alquimistas; só que, em vez de perseguirem a fórmula da multiplicação do ouro, procuravam uma forma de reproduzir valiosos manuscritos.

O livro dos prazeres proibidos é uma trama construída no entorno da criação da prensa, na Alemanha. Apresenta Johannes Gutenberg não apenas como o criador da tecnologia que mudou o mundo, mas também como um grande — ingênuo, enrolado e fracassado — golpista. A história se passa já no tribunal, que, além de colocar Gutenberg como um falsificador de livros, o acusa de diversos outros crimes cometidos para que conseguisse desenvolver a tecnologia que lhe deixaria famoso.

A construção narrativa é simples e recorrente: uma breve cena no tribunal, num julgamento que se arrasta por toda a obra para pontuar a história em seu presente, e as aventuras do protagonista — o grosso da narrativa — acontecendo em flashback. Sendo um artifício bastante batido e por conta da insistente repetição do formato ao longo do livro, as idas e vindas se tornam um recurso automático e vulgar, Andahazi não demonstra preocupação alguma em aprimorá-lo.

Em uma trama paralela que se passa numa zona, putas estão sendo assassinadas e tendo suas peles arrancadas. São elas que guardam O livro dos prazeres proibidos, que as autoridades temem ser divulgado junto de outras obras profanas após a invenção de Gutenberg. O livro, aliás, começa por aí, com mais um lugar-comum: um crime e um roubo garantem que a obra inicie com tensão elevada e um mistério a ser desvendado. Contudo, em que pese sua importância para a trama, esse braço da história vai sendo gradativamente deixado de lado, quase esquecido pelo autor.

Andahazi ainda opta por certas artimanhas banais, como encerrar um capítulo com o pai de Gutenberg dizendo que “um bom copista deve desconhecer o alfabeto” e abrir o seguinte com “Uma boa prostituta deve saber ler, escrever, falar vários idiomas…”. O contraste fica fácil demais, imediato, escancarado. Há também sequências claramente inspiradas em clichês do cinema: quando Gutenberg faz uma busca na biblioteca e se depara com o dorminhoco segurança, por exemplo: “Viu sacudir a cabeça, levar a mão à bochecha e espantar uma mosca inexistente. O velho chegara a despertar, mas não se deu ao trabalho de abrir os olhos”, uma cena já repetida exaustivamente.

Umberto Eco
É comum que após O nome da rosa thrillers históricos sejam influenciados ou comparados a Umberto Eco. O livro dos prazeres proibidos não é diferente. Um trecho exemplar: “A mais velha das meretrizes tinha certeza de que a sucessão de crimes tinha relação direta com o segredo mais bem-guardado do mosteiro: os valiosos manuscritos, os livros que guardavam os mistérios mais antigos da mais antiga das profissões” — crime, segredo, mosteiro, manuscrito e livros, troque o objeto em questão pelo segundo volume da Poética (supostamente dedicado à comédia), de Aristóteles, e temos praticamente o grande clássico de Eco.

Mais um: “Diante da falta de um diagnóstico unânime, todos dirigiram o olhar à sinagoga da cidade e chegaram, então, a um acordo: os culpados eram, como não?, os judeus. Ninguém sabia exatamente em que consistia sua responsabilidade, mas, sem dúvidas, eles haviam despertado a fúria divina manifestada no alinhamento dos planetas que provocara as altas temperaturas do verão e, por isso, as águas ficaram paradas e empesteadas da mesma forma que, durante a peste de 1283, os judeus foram acusados e punidos. Naqueles dias, as autoridades levaram à fogueira e queimaram vivos mais de seis mil judeus” — certo, conspirações contra judeus são muito recorrentes, mas inclusive na obra de Eco, como em O cemitério de Praga e sua sátira ao famigerado Os protocolos dos sábios de Sião. Difícil tirar o italiano do imaginário quando se lê esse tipo de narrativa.

Exaltação do objeto livro
Por fim, um aspecto chamou atenção deste apaixonado por livros que lhes escreve. A criação da prensa é colocada como coisa do capiroto, com ela as obras perderiam seu caráter artesanal e a ortografia como arte se extinguiria junto com os copistas e suas particularidades. Era temeroso que qualquer um pudesse ter uma biblioteca. Mais que isso, “o homem se prenderá tanto na leitura que passará as noites lendo, em claro, e os dias dormindo; e assim, de pouco dormir e muito ler, seu cérebro secará, até o ponto de perder o juízo”, veja que boa perspectiva.

Além disso, alguns hábitos e tendências que aparecem na narrativa — situada na transição entre a Idade Média e o Renascimento — ainda nos são bastante caros, como o “enlouquecido pela leitura” que se converte de simples leitor em pretenso escritor: “Imaginem um mundo de autores profanos que, afastados de vossa sábia guia, começassem a escrever heresia atrás de heresia”. Troque heresia por porcaria e veja se não soa atual. Ou o personagem que tem uma das bibliotecas mais ricas e bem conservadas de Paris, talvez porque jamais tenha aberto um único de seus numerosos volumes. “A posse de uma biblioteca não só outorgava prestígio a seu dono, mas era altamente decorativa” — o cara é do século 15 ou do 21? Ainda somos os mesmos.

O livro dos prazeres proibidos
Federico Andahazi
Trad.: Luís Carlos Cabral
Bertrand Brasil
294 págs.
Federico Andahazi
Nasceu em 1963, na Argentina. É formado em psicologia pela Universidade de Buenos Aires. O seu O anatomista foi traduzido para mais de 30 idiomas e se tornou best-seller mundial.
Rodrigo Casarin

É jornalista, especialista em Jornalismo Literário com pós-graduação pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário e editor do Página Cinco (paginacinco.blogosfera.uol.com.br), blog de livros do Uol. Além disso, colabora ou já colaborou escrevendo sobre o universo literário com veículos como Valor Econômico, Carta Capital, Continente, Suplemento Literário Pernambuco, e Cândido. Integrou o júri do Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa em 2018, 2019 e 2020 e o júri do Prêmio Jabuti em 2019.

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