Sociologia postiça, romance incompleto

Em “As noites de Flores”, César Aira se deixa levar pela realidade e coloco em segundo plano a natureza ficcional
César Aira, autor de “Pequeno manual de procedimentos”
01/09/2007

César Aira… Para todos os efeitos, ele é o escritor argentino que durante a última Flip (Festa Literária Internacional de Parati), de 4 a 8 de julho, não teve medo de criticar Gabriel Garcia Márquez e o realismo mágico. Ok, este resenhista não sabe se a ordem das palavras foi exatamente essa, mas o fato é que Aira chamou a atenção por essa, digamos, menção fora do consenso. Em verdade, Aira também pode ser conhecido com base em sua produção literária, para além de suas boutades estéticas que, de certa forma, têm lá seu valor, mas que podem criar certa antipatia em relação aos romances escritos por ele. Nesse sentido, o que segue nas linhas abaixo é uma análise em relação à obra de Aira, que pouco ou nada tem a ver com suas declarações no tocante a García Márquez. Entende-se, portanto, que César Aira é mais do que um polemista, muito embora As noites de Flores, obra recentemente traduzida, ainda esteja aquém do efeito desejado pelo escritor.

A avaliação do final do parágrafo anterior se baseia no alto teor de realismo existente em As noites de Flores. No romance, Aira tece uma narrativa com carga extrema de análise sociológica ao abordar a trajetória de um casal de idade que, no meio da crise argentina, decide entregar pizzas como forma de sobrevivência. É bem verdade, aqui, que Aira não fugiu à tarefa de narrar o absurdo da realidade cotidiana. Verdade, também, que fez isso da maneira mais eloqüente possível, chegando mesmo a declarar de que maneira o neoliberalismo havia sido nefasto para a Argentina. E é verdade, por fim, que o autor buscou uma narrativa que desse uma coesão bem elaborada à história. Entretanto, tudo isso (!) não é o bastante para se fazer literatura. Ou melhor: sempre que alguém chega como se fosse uma descoberta a ser feita, a expectativa é sempre maior. Mas nem sempre essa expectativa tem uma resposta à altura.

Em verdade, o dilema central da história está no fato de o autor deixar se levar pelos relatos verdadeiros, não prestando tanto atenção no aspecto de natureza ficcional. Desse modo, no afã de trazer a realidade para as páginas do livro, o que César Aira faz é tão somente exacerbar com cores vivas os dramas vividos pela sociedade argentina num período recente de sua história. Nesse caso, no entanto, há um excesso de realidade que, por fim, acaba comprometendo a ficção. Isso porque, tendo em vista que o romance foi elaborado no auge da crise socioeconômica daquele país, é necessário algo mais perene para que as referências não fiquem datadas ou simplesmente não surtam mais efeito, como ocorre no trecho em que o autor faz severas críticas ao neoliberalismo:

As novas condições econômicas, a concentração de riqueza e o desemprego criavam hábitos diferentes dos velhos hábitos. Os catadores de lixo não também não existiam antes e alguém poderia ter feito um paralelo entre a transformação de um operário em catador de papéis e a de um senhor de classe média em entregador de pizza.

Nesse sentido, o que se lê é quase uma dissertação sociológica que, a despeito de cumprir seu papel analítico, foge à proposta de trazer imaginação ao romance. É claro que haverá quem defenda o engajamento político do escritor, como se fundamental fosse a participação militante de todos os intelectuais, escritores e jornalistas contra a Nova Ordem Mundial. O texto perde fôlego à medida que deixa de lado a história para se prender aos fatos, à análise, a um tipo de crítica que, sim, possui seu lugar cativo nas artes. Ainda assim, é elementar contar com o talento em estado pleno, a fim de que esse tipo de romance não fique pretensioso tanto para o leitor comum quanto para o crítico especializado. E que seja uma história, enfim, que, se não faz uso do realismo mágico (para alguns tão fora de moda), ao menos saiba cativar o leitor de maneira tão apaixonada como o criticado Gabriel García Márquez faz.

As noites de Flores
César Aira
Trad.: Paulo Andrade Lemos
Nova Fronteira
188 págs.
Pequeno manual de procedimentos
César Aira
Trad.: Eduard Marquardt
Arte & Letra
186 págs.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

Rascunho