O que você faria se fosse a única sobrevivente de um acontecimento inesperado e misterioso, que a obrigasse a viver isolada nas montanhas em um perímetro delimitado por uma parede? Essa é a situação da protagonista de A parede, a obra mais celebrada da austríaca Marlen Haushofer, publicada originalmente em 1968 e lançada este ano pela Todavia. Não sabemos o nome da narradora cujo minucioso relato lemos nesta obra. O processo de despersonalização pelo qual ela passa liga-se à condição estabelecida por uma nova ordem — diante da qual ela decide escrever para não “perder a sanidade”. Seu relato narra como foi possível sobreviver confinada nos Alpes Austríacos, contando apenas com a companhia de alguns animais e de suas próprias habilidades para se manter viva. Uma profunda observação da natureza se opera de modo que a protagonista consiga se proteger, se alimentar e conviver em harmonia com os animais ao redor. Sua vida pregressa retorna em pensamentos e sonhos, marcando uma ruptura entre o passado e um presente no qual ela precisa se despir de quem era e encontrar um novo ser.
Tudo começa quando a narradora é convidada por um casal (sua prima e o marido dela) para passar uns dias em um chalé de caça. Ela decide descansar após a viagem, enquanto o casal passeia em um vilarejo próximo. Eles não retornam e, ao acordar no dia seguinte, a mulher decide caminhar até o local para saber o que houve. No entanto, sua caminhada é interrompida por uma parede invisível e intransponível que impede qualquer avanço. Aos poucos, ela percebe que está cercada pela parede e ficou confinada em uma área do bosque na qual é o único ser humano. Ela tem o chalé para habitar e alguns animais que também ficaram presos no mesmo espaço: uma vaca, uma gata e Lince, o cão do casal e seu grande companheiro durante o romance. A esperança de que a parede suma vai esvanecendo à medida que os dias passam e nenhuma mudança ocorre. A narradora então percebe que precisará poupar os mantimentos do chalé e se preparar para viver ali, sozinha com aqueles animais.
Não há explicação para o surgimento da parede e, nas reflexões da narradora, ela aventa a possibilidade de algum tipo de guerra, catástrofe ou ataque estar em curso, sendo que a parede poderia ser uma espécie de estratégia inimiga. Em alguns trechos, ela se questiona sobre “os vencedores” que nunca chegam ao local em que está. Em algumas de suas excursões, ela consegue enxergar pessoas petrificadas e mortas do outro lado da parede, indicação de que algo grave aconteceu do outro lado. Entretanto, diante da falta de explicações e comunicação, resta-lhe levar a vida em seu confinamento e narrar sua história, na esperança de que alguém, um dia, encontre seu relato. A leitura do romance exige uma concentração especial, uma vez que não há pausas ou capítulos. Seguimos o fluxo único de sua narração em primeira pessoa do começo ao fim.
Intertextualidade com um clássico
É impossível ler o relato da narradora e não se lembrar do romance Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, obra com a qual A parede estabelece um claro diálogo. Isolado em uma ilha por conta de um naufrágio, Crusoé escreve um diário e nos conta suas estratégias de sobrevivência, nas quais se incluem detalhes sobre modos de usar a terra, caçar, se alimentar, produzir vestimentas, proteger-se. A narradora de A parede também passa boa parte da obra relatando suas táticas, reflexões e aprendizados para sobreviver em isolamento no bosque. Considerando que a autora buscou esse diálogo com um romance tão canônico quanto Robinson Crusoé, o que se destacaria nessa “reescrita”?
O mais óbvio e determinante é a troca da narração para uma voz feminina, mas há também a mudança no tempo histórico. Tais fatores modificam o foco das reflexões e o próprio andamento da narrativa. A parede é um relato mais desencantado no que se refere ao poder de um indivíduo, tema que se impõe em Robinson Crusoé. No romance de Haushofer, destacam-se considerações sobre o papel da mulher na sociedade da época e sobre como sua nova condição a faz repensar sua vida anterior:
Quando hoje penso na mulher que um dia fui, a mulher do pequeno queixo duplo que se esforçava muito para parecer mais jovem do que era, sinto pouca simpatia por ela. Mas não quero julgá-la de modo tão severo. Afinal, ela nunca teve a chance de escolher a forma que sua vida teria.
O romance de Defoe se passa no século 18 e o de Haushofer no século 20. Se no primeiro é possível discutir questões relativas à colonização, no segundo entram lembranças da Segunda Guerra e medos sobre um possível ataque nuclear. Enquanto Crusoé nos conta com segurança suas estratégias de sobrevivência, a narradora de A parede é dura consigo mesma e duvida de sua capacidade, principalmente quando associa suas novas tarefas a uma função masculina:
Ao longo de dois anos e meio, sofri de ver essa mulher tão mal aparelhada para a vida real. Até hoje, não sei martelar um prego direito, e só de pensar na porta que quero abrir para Bella, sinto um arrepio na espinha. Claro que eu não tinha como saber que teria que abrir portas um dia. Mas, para além disso, não sei de quase nada, não sei sequer o nome das flores no pasto ao lado do riacho.
Apesar de reflexões como a citada acima, a narradora demonstra uma incrível inteligência e habilidade para sobreviver, caçando, plantando, protegendo a casa, confeccionando roupas e, principalmente, cuidando dos animais domésticos que ficaram isolados com ela. É curioso como ela mesma não consegue enxergar o que foi capaz de fazer diante de uma situação tão assustadora e insólita. Sua praticidade e capacidade de trabalho pesado são dignas de nota. É como se a ação ininterrupta provocada pelo trabalho funcionasse como um recurso para não sucumbir.
Outra diferença considerável entre os dois romances é que, ao contrário do romance de Defoe, em A parede não há o resgate da protagonista no final. Ela para de escrever quando seus papéis acabam, e a continuidade de sua condição fica evidente. Sabemos apenas que seu relato compreendeu o período de cerca de dois anos.
Os animais e a natureza
Pendurei ao lado da cama o fuzil de caça de Hugo, que estava carregado, e pus o lampião na mesinha de cabeceira. Eu sabia que todas as minhas medidas eram dirigidas contra seres humanos, e elas me pareceram ridículas. Mas como até então eu só havia me sentido ameaçada por seres humanos, não consegui me adaptar tão rápido à nova situação. O único inimigo que eu havia conhecido até aquele momento era o ser humano.
Enquanto os seres humanos afligem a narradora, a presença de alguns animais no chalé de caça é essencial para sua sobrevivência. Boa parte do romance é dedicada à relação estabelecida com o cão Lince, companheiro da narradora em todas as suas excursões pelas montanhas. Há ainda a vaca Bella, que produz o leite necessário à sua alimentação, e os gatos temperamentais que moram no chalé. A narração do parto de Bella, auxiliado pela protagonista, e as brincadeiras com o gato Tigre são exemplos de momentos nos quais essa comunhão se evidencia. O convívio com esses animais é narrado em muitos detalhes e o leitor passa a acompanhar o comportamento deles como um motor essencial da narrativa. Há uma espécie de humanização dos animais ao mesmo tempo em que a mulher também precisa aprender a ser um pouco “bicho”. Eles são sua família possível, e ela busca sobreviver também por eles.
Do lado de fora do chalé, a narradora ainda aprende a analisar o comportamento dos corvos, dos cervos, das corças e os ciclos da natureza. O tempo passa a ser medido de outra forma. O entendimento e respeito pelo entorno operam uma fusão dessa mulher com as montanhas. Ela passa a se enxergar como mais um elemento desse ambiente, tentando compreendê-lo para seguir viva. A parede pode ser considerado um relato de sobrevivência, oscilando entre reflexões sobre novos sentidos que a vida adquire em uma situação insólita e a realidade crua de uma mulher lutando para sobreviver em uma nova ordem.