As abordagens críticas sobre a produção poética de Reynaldo Valinho Alvarez são unânimes em destacar na leitura de seus poemas o rigor e o domínio do artífice na construção de toda uma obra. Inegavelmente, o poeta domina a técnica, nela se esmera e através dela se inscreve numa tradição, dialoga com seus antecessores e contemporâneos e recria, com dicção própria, seus caminhos, delineando escolhas bem particulares sobre as várias possibilidades oferecidas, que aí estão, na nossa história literária. Seu livro mais recente, Corta a noite um gemido, apresenta-se como testemunho dessa trajetória. Representa a continuidade de uma busca obsessiva e, de certa forma, inglória, por sentidos que se esgarçam e escapam, como “No peito, a rubra ferida/ deixou escapar a vida”.
É, entretanto, a vida em toda sua precariedade de recursos e de sentidos que constitui o fio resistente desse tecido, no qual o texto poético se constrói. O pré-texto que se esboça como temática é, nada mais, nada menos que a guerra em sua crueza e em seus absurdos. “Nada mais se precisa/ senão o fio agudo/ com que se sangra tudo”. A guerra com seus horrores, trazendo a morte com sua sede de sangue e com sua fome de carnes, surge como matéria-prima. “A morte, no seu canteiro,/ sem questionar o porquê,/ faz com ossos seu buquê.// … Renovada pelo sangue/ que bebe a cada explosão…/ Estala os dentes, feliz,/ esta que, artista, se crê…” A morte é o fio agudo com que se sangra tudo para afirmar a vida, fio tênue e cambaleante que resiste e se manifesta enquanto palavra lavrada a “pau e pedra”, esculpida, aprisionada ou liberta de sua inerente condição de impotência. Dentro desta perspectiva, a condição humana é discutida em uma dor manifestada no corpo mutilado, ferido, roubado e destituído de si mesmo, aos pedaços, na maioria das vezes. “Morrer faz parte da vida/ O que dói é a ferida”. É dessa forma que a morte, com sua máscara de guerra, perpassa todo livro e ganha contornos de pré-texto para se discutir a dor da vida em seus extremos.
Seria esse longo poema uma variação refinada de tantos outros que o poeta produziu? É uma questão a ser levantada, não para ser esmiuçada ou respondida aqui. Mas sim, para sugerir a leitura ou releitura de outros livros, escritos sob diversas formas, matizes e temáticas, com o admirável fôlego de uma voz que se propõe a tecer, além de uma futura manhã, a noite presente com seus suspiros e gemidos. Se a utopia de uma manhã que virá está comprometida por tantos horrores e calafrios, que a noite deste dia seja ouvida num presente que se vivencia através da guerra cotidiana de cidades arrasadas e gente destituída de todos os direitos elementares. Que essa voz se junte a tantas outras que cantaram sonhos e pesadelos e se manifestaram fazendo escolhas e priorizando o seu cantar sobre os que perderam tudo. É deste modo que essa voz se alinha a outras de gerações mais próximas ou mais distantes.
Contribuição literária
Apesar disso se evidenciar na forma, através da linguagem específica da poesia e do patrimônio e legado de nossa tradição lírica e, ainda, de toda obra do autor poder ser estudada e analisada resgatando e recriando essa tradição, não é suficiente para fazer jus à sua contribuição literária. Isso porque está mais que constatado que não é o conhecimento e domínio das formas que distingue um bom poeta. Apesar disso não ser de pouca monta, já que esta é a condição primeira para o instrumentalizar no ofício. Incorporar e dominar a técnica, o artesanato do poema, a forma é, portanto, tarefa óbvia e intrínseca a qualquer poeta, tanto aos que optam pela reprodução da tradição clássica da estrutura lírica, quanto aos que escolhem transgredir as normas dessa tradição. Para transgredir é preciso saber e conhecer muito bem o objeto da transgressão. O que está em questão é como essa forma torna-se um corpo vivo carregado de conteúdo, de expressão, apesar da incorporalidade dos sentidos que precisam de suporte. A construção de sentidos parciais e precários encontra nesse corpo um ninho para as palavras que se articulam ou se desarticulam na busca incansável de uma paz sem perspectivas.
Corta a noite um gemido é um poema que atravessa as fronteiras das definições de gêneros, pois transita entre o lírico e o épico e só na perspectiva de um olhar contemporâneo pode ser compreendido. Há uma voz que canta, há um sujeito que conta, que pinta, como câmera, fotografa ou filma a miséria humana embrutecida pela guerra dos dias. Esse sujeito lírico, por vezes, se manifesta como a voz que já se levantara em O solitário gesto de viver, no poema Fim dos tempos: “Enquanto a tempestade a nau consome, o gordo verme a carne come”. Do sentimento mais íntimo do ser emerge um coletivo gesto de viver a morte nossa de cada dia. O registro dessa dor coletiva constrói um sujeito que, sem abrir mão de sua expressão e opção pessoal, aponta para a condição coletiva da humanidade sofrida e trucidada.
É assim que se inicia esta epopéia: “Ah, imperfeitas naus, tantas costuras./ tantos remendos nesse casco exausto…” são os primeiros versos da primeira parte do livro intitulada Desertos calcinados. Este é o primeiro dos seis poemas que o compõem, separados, entre si, por uma folha negra, com títulos impressos em letras brancas. Não são as naus de Camões que atravessam os mares. Delas só restam as lembranças marcadas pela disposição das letras no papel e pelas referências aos mares, agora, tantas vezes navegados. Restam talvez a atualização de algumas buscas, de alguns naufrágios ou de cabos das Tormentas pela frente.
Elo rítmico e visual
Essa primeira parte do livro, como todas as demais, são formadas por dez poemas, dispostos cada qual numa página e matematicamente numerados. Esses dez poemas, apesar de poderem ser lidos com unidade própria de sentido, fazem parte de uma unidade maior, que é introduzida por diferentes títulos: Desertos calcinados, Corpos em pedaços, O menino sem braços, A infanta defunta, A noite dos insones e Corta a noite um gemido. Cada uma dessas partes é unificada em seus 10 poemas, tanto pelo aspecto temático que são trabalhados quanto pela simetria com que são organizadas as estrofes nas páginas. Ou seja, em cada uma dessas partes, os 20 versos que as compõem possuem disposições diferentes. Isso possibilita unificá-los em blocos de dez, e diversificar ritmo e musicalidade, quebrando a possibilidade de monotonia.
Além disso, essa disposição ajuda a estabelecer um elo rítmico e visual específico para cada parte do poema longo como um todo, subdivido em seis blocos, dentro dos quais se inscrevem dez composições, ao mesmo tempo autônomas e amarradas pela forma e pela temática. Tais considerações são descritas, aqui, muito sinteticamente para lembrar, em linhas gerais, como a partir da forma clássica de versificação são recriadas novas estruturas, como estas são articuladas, remanejadas e ressemantisadas para dar conta de um conjunto de questões que explodem como bombas no peito de corpos mutilados.
A relação das formas clássicas com a poética de Reynaldo Valinho Alvarez tem merecido atenção e análise de muitos estudiosos. Parece mesmo que é uma recorrência no estudo da maioria de sua obra poética. Antônio Olinto ressalta, por exemplo, apreciando Cidade em grito, como o poeta veio “recolocar em nossa literatura o problema da poesia como forma de conhecimento”. Ou seja, destaca o quanto o aprimoramento técnico pode suscitar sistematização da arte poética enquanto conhecimento e funcionalidade prática de produção e inovação. Delia Cambeiro, numa apresentação de Lavradio, a partir da constituição formal dos poemas, levanta todo um inventário de formas e de vozes intertextuais que dialogam na poética de Alvarez. Considera que esta “encerra a linguagem em ação, cria/recria com discurso novo o que herdou da encruzilhada histórica da poesia lírica, não rompendo, mas sim transformando, lavrando em gerúndio contínuo o chão já percorrido”. A partir dos procedimentos formais, tem-se avançado no estabelecimento das linhas de força e das influências que marcam a escritura poética do autor. Proximidades com Augusto dos Anjos, Jorge de Lima ou João Cabral têm sido levantadas por nomes como Benedito Nunes, Ivan Junqueira, Alexei Bueno, entre outros.
Sentido ambíguo
Em O menino sem braços, segunda parte do livro, um menino atingido pelas bombas na cidade destruída pela explosão é fotografado e registrado num instantâneo momento. “Voa o menino e, ao voar, deixa cair os braços,/ Não há casa, nem pais, nem mesmo há um país./ Só lhe resta contar com os seus próprios passos,/ sem casa, mãe ou pai, sem pátria e sem raiz.” Mais adiante, em outros fragmentos, esse menino é comparado aos ratos que circulam tontos pela cidade destruída. Está sem braços, sem pátria, sem comida, sem saída. Destituído de tudo, até do que não tinha ou do que só tinha em sonhos, como o nosso cão sem plumas nordestino. Sobre outro eixo, são observados os vermes, únicos seres satisfeitos com aquela história toda e que se deleitam com a devastação da cidade. “A carniça abundante é festa do verme/ e a guerra também é esplêndida alegria,/ para o outro verme gordo, o de rósea epiderme,/ que se entope de sangue e não sofre de azia.” O verme é apresentado em seu sentido ambíguo, verme-verme e verme-homem, ambos beneficiários dos negócios de guerra.
As imagens em A infanta defunta são construídas com a sutileza e a dramaticidade de uma fotografia ou de uma cena teatral. “Recolhe a infanta nos braços/ o pai, que a contempla, mudo,/como quem já perdeu tudo.” O corpo da criança nos braços, o corpo do pai tão inerte no seu abandono e desespero, o corpo da cidade em ruínas constroem o corpo de um poema fragmentado sustentado por versos, rimas e ritmos bem marcados. Um dos versos, como eco de uma voz, como um coro de uma tragédia, repete-se concluindo cada estrofe desses fragmentos.
A corporalidade, sua precariedade e simbologias são uma discussão importante que perpassa todo o livro. Reporta-nos ao estudo de Richard Sennett em Carne e pedra, na discussão das marcas da mutilação dos heróis de guerra. Estas marcas afirmam-se como signos de resistência a qualquer enquadramento imposto pela sociedade. Em O corpo impossível, esta questão também é abordada por Eliane Moraes, que se volta para o papel do artista nessas condições históricas adversas. “Diante da falta de sentido de qualquer valor absoluto… Diante de um mundo em pedaços e do amontoado de ruínas que se tornara a história, para utilizarmos os termos de Walter Benjamin, só restava ao artista capturar os fragmentos e as instáveis sensações do presente”, cujo corpo ferido constitui-se enquanto o mais legítimo e expressivo signo.
Em entrevista, argüido sobre a repercussão de sua lírica num mundo violento que vivemos, Reynaldo Valinho Alvarez responde: “Não se grita contra o mal, a crueldade, a dor e o sofrimento porque se tem a certeza de vencê-los. O brado nasce da impossibilidade de aceitá-los,… Não cabe ao poeta apoiá-los e, por isso, seguirá protestando, mesmo que na forma de um gemido”.
Em A noite dos insones e Corta a noite um gemido, com ordenação diferenciada dos versos, os estragos da guerra são descritos entre sombras de uma noite que não acaba e os sobreviventes desse caos, entre eles “A esperança, ainda que pouca,/ resistiu à noite louca.” Como isso foi possível, como isso faz sentido, não se sabe. Em dados momentos, o contexto sobrepõe-se a tudo e o poema com toda a ordem, rigor na forma e apelo imagístico parece sem sentido. Mas como diria Derrida: “Um poema corre sempre o risco de não ter sentido e ele nada seria sem este risco”. Ainda mais quando se trata de testemunhar o absurdo. Com todo desespero, “o canto espera, calado,/ o silêncio do soldado”. Ou ainda, “mas resta a voz que ainda guia/ o cego na travessia”. E é a poesia, seu canto, sua teimosia, como a esperança, mesmo que pouca, na noite louca ainda profetiza: “que o choro e o ranger de dentes/ sejam da paz, as sementes// E a noite envolva em seu manto,/ o amor, o gesto e o canto”.