Sobre um filme, num Natal distante

Aclamado mundo afora, o cineasta brasileiro Alberto Cavalcanti sempre foi desprezado em seu país desmemoriado e ingrato
Cena de The Life and Adventures of Nicholas Nickleby
01/12/2004

Só dois cineastas brasileiros tiveram, no plano internacional, o reconhecimento das suas filmografias como importantes não apenas para a história do nosso cinema. Por ordem de entrada na estima internacional — respectivamente nos anos 40 e 60 —, são eles o carioca Alberto Cavalcanti e o baiano Glauber Rocha, “medalhistas de ouro” dos verbetes longos de enciclopédias e de retrospectivas respeitosamente organizadas sem o dedo indutor de instituições como o Itamarati e o MEC.

No saldo de boas recuperações do ano que termina, alguns filmes de Glauber foram lançados em DVD, e entrou em exibição o documentário Glauber o Filme, Labirinto do Brasil, que Silvio Tendler começou a realizar no dia do velório do cineasta, há mais de 20 anos. Quanto à obra de Alberto, quando merecerá os mesmos cuidados e homenagens, no país que (acusava o próprio diretor) “preferia ignorá-lo”?

Como se sabe, Cavalcanti teve aqui uma história mais do que atritada com o poder público e com a esfera privada. Esta “vetou”, por exemplo, o seu filme mais aclamado — As aventuras de Nicholas Nickleby (1947) — na pessoa do exibidor Severiano Ribeiro… Bem, vamos por partes, para contar a história e comprovar a influência da obra de Alberto Cavalcanti até sobre mestres do porte de Akira Kurosawa, entre outros.
Alberto faleceu em Paris, às dez horas da manhã de 23 de agosto de 1982, de “velhice e extrema fadiga de viver”, segundo a pessoa que me telefonou, apenas um par de horas depois da morte de um homem que estava magoado demais com o Brasil para se permitir morrer na sua pátria. Tinha 85 anos — e uma longa carreira em dois continentes, na qual o seu nome figurava como importante pelo menos para três cinematografias: a francesa, a inglesa e a brasileira. Era um cidadão do mundo, uma figura legendária da “sétima arte”, conforme era chamada a linguagem nova, por ele abraçada em detrimento da arquitetura (na qual se diplomou, em Genebra).

Fui amigo desse homem de extrema elegância e generosidade, carioca de ascendência pernambucana — pelo lado materno — e cuja mão firme desenhou os estudos de cena e vestuário de O rei póstumo (peça de teatro escrita já vão lá trinta anos!). Um dia, pretendo escrever sobre o Alberto que se desempenhou de tal “tarefa” — em Olinda e na Flórida — com o rigor de quem estivesse se dedicando ao trabalho para um texto da tradição do melhor teatro. Longe disso, a peça era inédita e o autor tinha vinte e quatro anos. Temerário, o moço foi “em frente” e solicitou os esboços do mestre que se iniciara na profissão justamente como cenógrafo, trabalhando com Marcel L’Herbier, Louis Delluc e outros nomes da avant-garde francesa. O legendário Cavalcanti não se importou que O rei póstumo fosse, em 1973, um texto ainda não encenado e da autoria de um estreante. Fez a sua parte, dando o melhor de si — e os estudos, de grande beleza, são hoje o maior atrativo da peça nunca montada. Lancelot do Lago, Guinevere, o rei Arthur, Merlim e outros personagens — além dos croquis do cenário — revelam uma das facetas do talento multifacetado do cenógrafo, arquiteto e diretor celebrado pela competência e domínio do métier. Seria o bastante para lhe desimpedir os caminhos, na Vera Cruz, ou meramente para lhe garantir a exibição dos seus filmes no seu país?

Não. No Brasil, não. O caso de Nicholas Nickleby é exemplar: o filme é um dos mais estimados dentre aqueles dirigidos por Cavalcanti, para a Ealing Studios. Baseado num dos romances “menores” de Charles Dickens, a obra ainda é considerada uma das mais felizes adaptações do escritor vitoriano, feitas até hoje. Para alguns, até mesmo a melhor — o que implica na comparação com longas-metragens dirigidos por Sir David Lean e outros diretores do mesmo nível.

Acontece que o cineasta brasileiro — e, aqui, mais inglês do que os britânicos — concebeu uma Londres de época (1830) irretocável nesse Nicholas Nickleby com toques Tudor e toda uma confusão pré-vitoriana que o tornam ainda hoje encantador e, talvez, mais dickeniano, no “tom”, do que Grandes esperanças e Oliver Twist, meio atropelados pela abundância de personagens e detalhes típicas do autor de David Copperfield. Essa lição albertiana do melodrama à Dickens, não poderá faltar, portanto, na mostra que se prepara para o próximo ano — pois já basta que tal lição tenha sido atropelada, um dia, pelos preconceitos de um exibidor brasileiro. Fiquei sabendo do que aconteceu com Nicholas, cá na “terrinha”, por carta do próprio cineasta, datada de 23 de dezembro de 1974, enviada de Nova York:

“Isto é um apêndice da minha carta de três dias atrás… Achei engraçada a ressurreição do filme — Nicholas Nickleby — pelo Natal, em um cinema elegante de New York!”

Abro parênteses: Alberto anexara, à carta, a programação (“Goings on about town”) natalina, na qual se anunciava o filme no Carnegie Hall Cinema, no dia 24 de dezembro. Claro que ver o velho Nicholas Nickleby “ressuscitado”, pelo Natal, era muito agradável para o diretor… mas a carta prosseguia, a respeito dos dias já remotos do Brasil do anos 50, quando ele tentara promover a exibição comercial da película no Brasil, “nos cinemas da empresa de Luiz Severiano Ribeiro”. Depois de muita conversa e bons contatos, arranjara-se uma sessão especial para o todo poderoso exibidor, ao fim da qual Severiano dera o veredicto contrário às pretensões do cineasta. Acho melhor dar os termos sucintos da carta, na qual o próprio Cavalcanti compara a situação do filme encaixado na programação especial novaiorquina, na tela nobre do Carnegie Hall, com aquele julgamento severíssimo, ouvido do homem que detinha o poder de decidir o que os brasileiros iriam ver nos cinemas. Aspas: “e bem me lembro do Severiano Ribeiro tê-lo rejeitado (o filme) como julgando-o — sic — acima da mentalidade do público brasileiro! Um grande abraço do Alberto”.

Foi mais uma decepção — dentre muitas — na experiência do cineasta com o seu próprio país. Essa, das mais “leves” (as delongas e indelicadezas dos diretores da antiga Embrafilme, obstaculando o último projeto do cineasta — Antonio José, o Judeu — com certeza foram as mais duras…), mas o caso de Nicholas Nickely me parece ter um sabor de “Febeapá” todo especial, ao lado da decisão da empresa de correio nacional que, em 1997, não considerou Alberto Cavalanti “notável” o bastante para figurar em selo comemorativo do seu centenário de nascimento. É a mais pura verdade. O Correio deu seu veredicto e, naquele ano, não saiu o selo comemorativo dos 100 anos do autor de Rien que les heures (1926), o filme que o genial cineasta japonês Akira Kurosawa lista entre aqueles que mais o influenciaram, junto com filmes de Ford e Jean Renoir, Chaplin e Fritz Lang, Eisenstein e Carl Dryer, Murnau e Luis Buñuel. Conforme se lê na autobiografia de Kurosawa (Gama no Abura, Tóquio Iwanami Shoten, 1984), é em tal companhia que o diretor de Os sete samurais coloca a obra do brasileiro Cavalcanti. Ele a viu no longínquo Japão, na juventude, por sorte e mercê de não existir nenhum Severiano Ribeiro nipônico por lá, naquela época.

Alberto Cavalcanti foi recusado por exibidores, produtoras (Embrafilme) e órgãos oficiais (ECT) do seu país desmemoriado e ingrato. Como diria Orson Welles, it’s all true.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho