Há uma idéia, defendida por gente que entende muito do assunto, de que um livro só vai revelar sua real importância para a literatura passados cinqüenta anos de sua publicação. Seria esse o tempo mínimo exigido a uma espécie de maturação, da qual ele vai sair como um vinho soberbo a mostrar todas as qualidades acentuadas pelo envelhecimento ou, no sentido contrário, como um vinagre que não presta mais ao paladar. Diferentemente do que acontece com os vinhos, pode ainda se transformar em água e sair do processo ostentando as três notórias características: inodora, insípida e incolor (é esse infelizmente o destino de grande parte da produção literária). É claro que sempre se pode especular e prever aqui e agora a importância que determinada obra terá no futuro. Mas a confirmação, só o tempo trará.
Na vida sucede o mesmo. Existe uma hora em que certos fatos por nós vividos ou testemunhados deixam de ser mera lembrança ao ganharem uma dimensão histórica. Para isso, via de regra também é necessário algum tempo. Mas a História é um pouco mais célere que a literatura, talvez porque sua relevância seja outra. Em novembro de 1989, enquanto assistíamos boquiabertos pela tevê a uma multidão avançando sobre o Muro de Berlim para forçar sua derrubada, já sabíamos que a História estava naquele momento sendo dividida em antes e depois daquele episódio.
O Brasil de 1989 andava às voltas com as primeira eleições diretas após vinte e dois anos da ditadura militar e de outros quatro governados pelo primeiro e último civil escolhido por uma excrescência chamada “colégio eleitoral” — como se sabe, o vice José Sarney tomou posse no lugar do eleito Tancredo Neves e lá ficou. A inflação galopava e os salários só não viravam pó por causa de um dispositivo chamado “gatilho”, que fazia a correção monetária automática cada vez que a alta nos preços atingia um patamar pré-definido. A toda hora, a moeda perdia zeros e mudava de nome. No segundo turno das eleições, sobravam Fernando Collor, pelo minguado PRN, e Lula, na primeira vez em que o Partido dos Trabalhadores chegava à disputa pela presidência do país. Nas ruas, a frota de automóveis — ou de “carroças”, assim qualificados por Collor meses depois — era constituída de modelos novos como Uno, Monza e Santana, dos veteranos Chevette e Opala, além dos indefectíveis Fuscas.
Grande impacto
Paulo, personagem do romance Habitante irreal do homônimo Paulo Scott, tem vinte e um anos em 1989, e talvez não seja uma coincidência o fato de ele ser cria daquele ruidoso 1968 que conseguiu pôr o mundo de cabeça para baixo. Estuda direito, estagia numa banca de advogados em Porto Alegre, é filiado ao PT. Como grande parte dos jovens da sua idade naquela época, Paulo está desiludido com o estudo, com o trabalho e, principalmente, com os novos rumos pelos quais enveredou seu partido. Volta de uma viagem a Rio Grande na direção de seu flamante Fusca sob uma forte chuva, quando avista na beira da estrada um vulto agachado. Apesar do temporal, consegue distinguir uma indiazinha agarrada a um maço de jornais e revistas. A cena causa em Paulo um grande impacto, mas ele não pára. Roda mais alguns quilômetros antes de se decidir a dar meia-volta e oferecer carona à menina.
Esse encontro é o ponto de partida do livro e, num certo sentido, também o de chegada. Depois dele, os caminhos se bifurcam e outras histórias se imbricam para criar aquela trama multifacetada característica do romance. Paulo vai se envolver com Maína, a indiazinha, e ter um filho com ela. Vai abandonar os estudos, o estágio e a militância política e se transferir para Londres, onde protagonizará cenas dignas de um thriller ao se meter na ilicitude de invadir imóveis desabitados para em seguida vender sua posse a terceiros. Mas a vida continuará no Brasil, com desmembramentos que Paulo não tem como conhecer, dentre eles o nascimento de Donato, seu filho índio. E mais não será possível aqui adiantar sob pena de se trair o leitor.
O livro se divide em quatro partes: do que acontece sobre sempre algo para ocorrer de novo, ninguém lê direito o súbito, a primavera do habitante irreal e ninguém sabe ao certo o que se faz com o comum. O primeiro capítulo, intitulado mil novecentos e oitenta e nove, é todo ele uma longuíssima nota de rodapé para explicar justamente esse título. A inusitada solução vai reaparecer em outros momentos. Trata-se de um detalhe gracioso com uma certa funcionalidade, e nada além disso.
Vários méritos
Habitante irreal tem vários méritos. Um deles é a reconstituição fiel de um cenário, a Porto Alegre do final dos anos 1980 e início dos 90, não só pela ambientação detalhada — que este resenhista pode atestar por ter vivido in loco aqueles anos —, mas também pela recriação de uma lógica e de uma ética muito peculiares da época. O Brasil costurava sua redemocratização sob o fogo cerrado da hiperinflação, o que desestabilizava qualquer projeto político ou econômico duradouro. Vivia-se apenas o presente, pois não havia como prever um futuro. O dinheiro se multiplicava em contas remuneradas que mascaravam uma deterioração constante. Noutras palavras, vivia-se uma irrealidade que logo adiante cobraria sua fatura, e Porto Alegre apenas refletia o desconcerto geral do país. Para quem viveu essa época, será uma delícia reconhecer endereços, trajetos, ruas, bares, carros e outros tantos detalhes que, perdidos no tempo, aguardavam a hora de serem resgatados pela literatura.
Outro acerto foi trazer para a trama personagens índios e abordar sua relação com o universo urbano contemporâneo. O índio sempre teve um lugar de destaque na literatura sul-rio-grandense, desde os causos de J. Simões Lopes Neto, passando pelo monumental O tempo e o vento de Erico Verissimo e chegando aos contos de caráter pampiano de Sergio Faraco. Nessas obras todas, porém, ele é personagem da campanha, quase sempre a serviço dos mesmos brancos que lhe tomaram a terra ou de jesuítas que queriam convertê-lo e domesticá-lo como se fosse um animal selvagem. A família de Maína vive acampada às margens da BR 116 a alguns poucos quilômetros de Porto Alegre, para onde Paulo a leva depois de convencê-la a sair da chuva e aceitar sua ajuda. O envolvimento sexual dos dois é tratado com tal naturalidade que faz com que o leitor releve o fato escandaloso de Maína, aos quatorze anos, ainda ser quase uma criança quando Paulo a deflora. As diferenças culturais, sutilmente retratadas no romance, respondem pela façanha.
Também é digna de nota a ousadia de Scott em criar um entrecho que desafia a todo momento a verossimilhança, tão mirabolantes são as viradas na história e as situações vividas pelos personagens. A ficção não deve mesmo ter qualquer compromisso com a realidade, mas a tendência atual da literatura brasileira é buscar a estranheza no comezinho e não na fantasia. Nesse aspecto, Habitante irreal é uma fonte de surpresas que a mão firme do autor consegue harmonizar.
Alguns defeitos
Há, contudo, alguns aspectos que podem ser aperfeiçoados em edições futuras. Scott tem uma prosa que segue o ideário contemporâneo e que busca aproximar o discurso literário do coloquial. É certo que não há mais lugar na literatura para um texto empolado ou, com raríssimas exceções, demasiado erudito. Mas o exercício da simplicidade é algo que demanda grande esforço, pois o registro literário é — e sempre será — mais sofisticado que o coloquial. Noutras palavras, é necessário requinte estilístico para que o texto soe simples, fácil e fluído. O uso indiscriminado de formas como as já consagradas “pra”, “pro”, “dum” e “duma” ou as novíssimas (e horrendas) “pruma”, “prum”, “praquela” e “praquele” cria situações em que elas soam falsas, como no exemplo:
Donato permanece estarrecido ante a vastidão do horizonte turquesa prevalecendo sobre qualquer outra imagem ou objeto que se anteponha, subtraindo a imagem ou a figura que for pra dentro de sua enormidade.
A inadequação do tempo verbal em algumas passagens é outro problema. A mescla de presente histórico, passado perfeito, passado mais-que-perfeito e futuro confunde o leitor. Observe-se o trecho:
Colocará Maína pra dormir no seu quarto, mostra como trancar a porta por dentro (enquanto explica sente-se meio idiota, a menina confiou nele até agora, não haveria de ter outro tipo de receio, ainda assim lhe pareceu apropriado).
A frase começa no futuro, chega ao presente e termina no passado, e sem nenhuma justificativa para tal indecisão. Tudo leva a crer que a revisão tenha falhado, mas quem assina o livro é o autor e é dele que se vai cobrar qualquer deslize.
Também chama a atenção uma ocorrência bastante comum: a contaminação do narrador pela voz do personagem em que ele está focado. Scott optou por um narrador neutro em terceira pessoa cujo foco se alterna de um personagem a outro. Como se sabe, a neutralidade de quem narra é um dos fatores que ajudam a apagar as pegadas do autor e, portanto, algo valioso. Mas quando, por exemplo, o discurso descamba de súbito para um léxico francamente chulo, o efeito é dissonante: o leitor vai perceber que a voz do personagem está se impondo à do narrador, quebrando assim sua neutralidade.
A despeito dessas pequenas imperfeições, todas facilmente sanáveis, Habitante irreal é um romance bem estruturado e original que prende o leitor do início ao fim. Pode-se antever que seu destino não será virar água.