Sobre heróis e amigos

Com estrutura que dialoga com clássicos, Irmão de alma, de David Diop, traz uma comovente história de vingança e loucura ambientada na guerra
David Diop, autor de “Irmão de alma”
02/04/2021

O tema da morte e dos irmãos de armas é muito antigo. Já aparece na Ilíada, quando Aquiles, transtornado pela morte de Pátroclo, parte em fúria na direção dos inimigos. Pátroclo avisa ao troiano Heitor que ele morrerá nas mãos do seu amigo. O grito de Aquiles, tomado pela dor e pelo desejo de vingança, infunde o terror na tropa inimiga. O aspecto trágico não está ausente: vingar Pátroclo, matando Heitor, significava selar a sua própria morte. Mais do que vingar o amigo, ele lhe oferece a própria vida.

Poderíamos recuar mais dois mil anos na direção da epopeia de Gilgamesh, rei de Uruk, que forma com Enkidu um par complementar. Eles se enfrentam em uma luta terrível para depois se tornarem inseparáveis e viverem várias aventuras juntos. O primeiro representa o lado civilizado e o segundo, selvagem. Será a morte do amigo que levará Gilgamesh a tomar consciência da condição humana e a tentar superá-la buscando a imortalidade.

Até mesmo Riobaldo e Diadorim, cujo amor “era um impossível”, são companheiros de luta e parte de um mesmo bando de jagunços “cachorrando” pelo sertão. A morte de Dia-dorim, nome cuja etimologia pode significar “através da dor”, é que põe Riobaldo a “especular ideia”, recontando e ressignificando sua vida para o doutor da cidade que o escuta com toda a paciência. É a perda do seu “amor de ouro” e o desespero por ter contribuído para tal que farão de Riobaldo um homem cheio de dúvidas, que não para de examinar seus atos passados. Inconsolável, transformou-se em um narrador ambíguo atormentado por questões insolúveis.

Também atormentado é o narrador e protagonista de Irmão de alma, igualmente por causa de um amigo que morre na guerra. Soldado senegalês do exército francês durante a Primeira Guerra Mundial, Alfa Ndiaye vê morrer, diante dos seus olhos, Mademba Diop, um amigo que ele considerava como “mais que irmão”. As duas famílias eram ligadas por um parentesco simbólico e eles se conheciam desde crianças. O pior é que Alfa Ndiaye se considera duplamente culpado. Acha que Mademba Diop se lançou feito um louco da trincheira para responder a uma brincadeira do amigo acerca do totem da família dele. Ao encontrar Mademba, que tivera o ventre rasgado de cima abaixo pela baioneta de um inimigo, Alfa Ndiaye se recusa a degolá-lo, mesmo que o amigo, “devorado pela dor”, implore para que seu suplício seja abreviado.

A partir daí, assolado pela culpa e pela raiva, Alfa Ndiaye se dedica a uma forma de vingança assustadora contra os soldados de olhos azuis, um dos quais foi o carrasco do seu amigo e irmão. Rastejando, aproxima-se da trincheira inimiga e finge-se de morto até derrubar um soldado com um golpe de facão na perna. Amarra-o e em seguida despe-o totalmente para desfrutar do terror que vê nos olhos de sua presa. Em seguida, com um golpe no ventre, põe o lado de dentro do lado de fora, da mesma forma que acontecera com seu amigo. Por fim, com um golpe preciso, degola sua vítima. Mas esse ritual macabro não se encerrava aí. Decepava a mão direita e a trazia junto com o rifle que ela antes empunhava. Trazia esse troféu para o acampamento francês, onde chegava cheirando a morte, “como uma estátua de sangue e lama misturados”.

De herói a feiticeiro
De início, Ndiaye é celebrado como um herói, afinal, ele apenas exacerbava o papel que o capitão Harmand esperava dos “chocolates da África Negra”: “bancar o selvagem a fim de assustar o inimigo”, que tinha “medo dos negros, dos canibais, dos zulus”. Sendo assim, os soldados negros deveriam fortalecer esse imaginário saltando da trincheira com o rifle na mão esquerda e o temível facão na mão direita, colocando “no rosto olhos de loucos”.

Mas depois da quarta mão trazida por Ndiaye para a trincheira, até os negros começam a ter medo dele. Circulam boatos de que ele era um dëmm, um feiticeiro que devorava as almas dos inimigos e também dos amigos. Todos continuam a sorrir diante dele, mas apenas por medo. Com isso, ele se torna um “intocável” — há quem tenha pavor de sequer mirar nos seus olhos.

Ndiaye percebe que o verdadeiro dëmm é o capitão, que tem os olhos “mergulhados em uma cólera contínua” e “ama a guerra como se ama uma mulher caprichosa”. Ele “alimenta-a sem medidas com as vidas dos soldados”: Harmand é que é “um devorador de almas”.

Após arrancar a sétima mão inimiga e trazê-la para o lado francês, Ndiaye é afastado pelo capitão e enviado para um hospital, onde é cuidado por um psiquiatra, visando “limpar o nosso espírito da sujeira da guerra”. Começa aqui a parte mais bonita do livro, quando o tratamento leva Alfa Ndiaye a mergulhar em suas memórias de infância e juventude, a começar pelo seu primeiro amor.

Antes da tragédia
O pai de Ndiaye era um velho homem com três esposas, respeitado, mas sem grandes riquezas e poder. Sua hospitalidade para com um pastor nômade faz com que este lhe ceda sua belíssima filha Yoro Ba como retribuição. Ela era digna de casar com um príncipe e seu dote devia valer um rebanho. Tudo vai bem, mas quando seu pai desaparece, Yoro Ba vai atrás dele e também acaba sumindo. Entristecido, Ndiaye acaba sendo adotado pela mãe de seu amigo Mademba, por insistência desse. Sendo assim, eram triplamente irmãos: pelo parentesco de zombaria que havia entre as duas famílias, pela forte amizade que os unia e por terem sido criados pela mesma mãe.

Ndiaye e Mademba eram opostos complementares. Ndiaye, belo, forte e musculoso, só queria saber de dançar, nadar e lutar, enquanto Mademba, pequeno e franzino, não parava de estudar e, aos 12 anos, já recitava o Corão de cor. Mas eram unha e carne. Foram circuncidados no mesmo dia e receberam lições de um ancião, que lhes disse:

Nada do que nos acontece aqui em baixo é novo, por mais grave ou benéfico que possa ser. Mas aquilo que sentimos é sempre novo, porque cada homem é único, como cada folha de uma árvore é única.

É impossível não deixar de assinalar aqui a semelhança com o símile homérico de que as gerações são como as folhas das árvores, que o vento lança ao chão (Ilíada). Mas a lição do velho muçulmano aponta para a especificidade individual.

Para encurtar a história, é Mademba que tem a ideia de entrar na guerra para ajudar a “Mãe França” e para se tornar um cidadão francês. Ndiaye o ajuda a passar no teste físico, preparando-o durante meses. E entra no exército com ele. E, em seguida, a tragédia.

Vingança e loucura
Não posso contar o que ocorre com Ndiaye no hospital. Na Ilíada, o furor de vingança de Aquiles equivale a uma forma de loucura. Não cessa de se vingar de Heitor, que matara seu amigo Pátroclo. Depois de vencê-lo, arrasta o cadáver de Heitor em torno das muralhas de Tróia, para desespero de sua família e de toda a cidade. Não satisfeito, chama os heróis gregos para atravessarem o corpo de Heitor com suas lanças. Os deuses, todavia, preservam o cadáver do troiano. Aqui temos o tema da mutilação do corpo inimigo como forma de vingança, fato central em Irmão de alma.

Aquiles só irá acalmar-se depois da corajosa visita feita pelo pai de Heitor, Príamo, rei de Tróia, que lhe pede que o corpo do filho seja devolvido para que a ele sejam prestadas as honras fúnebres. Por entender, graças a Príamo, que também ele, Aquiles, morreria e seria chorado pelo seu pai, ou seja, por compreender o aspecto trágico da condição humana.

No caso dos soldados “chocolates da África Negra”, cujo destino é tão bem dramatizado por este livro, sua tragédia está ligada à dominação colonial e à produção de um imaginário acerca do homem negro que servia para legitimar e justificar os impérios das potências europeias. Esta ideologia foi uma destruidora de vidas, uma devoradora de corpos e almas. Consciente desta mentira e com o corpo apropriado para o papel, Ndiaye acreditou ser possível manipular este fantasma a serviço da vingança pelo amigo que perdera. Ele matava com o facão que afiava durante horas, mas o prazer da retribuição era obtido pelo medo que via nos olhos azuis dos inimigos. As mentiras que contamos para nós mesmos, todavia, acabam sendo as mais perigosas.

Irmão de alma
David Diop
Trad.: Raquel Camargo
Nós
128 págs.
David Diop
É professor universitário e romancista. Nasceu em Paris, em 1966, e passou a infância no Senegal, voltando à França para estudar. Irmão de alma é sua segunda obra, a primeira foi 1889, L’Attraction universelle, um romance histórico. Irmão de alma foi publicado na França em 2018 e ganhou o Prix Goncourt des lycéens, em que dois mil estudantes do Ensino Médio leem 12 obras selecionadas pelo júri, participam de debates e elegem o vencedor. O prêmio teve uma versão brasileira em 2019 e o júri de dez universitários também elegeu o livro de Diop.
Marcos Alvito

Professor alforriado da universidade, dedica-se a oferecer cursos livres de literatura e ao Urucuia, podcast voltado para ajudar a ler Grande sertão: veredas, sua paixão maior.

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