“Não há escolha. Estamos presos ao livre-arítrio.”
A afirmação de Isaac B. Singer é uma dessas pérolas de simplicidade que conseguem sintetizar à perfeição um raciocínio dos mais sofisticados e que levou séculos para ser construído. Ao imaginar que a liberdade de escolha é na verdade uma outra forma de prisão, Singer ironiza um preceito bíblico fundamental, algo cuja conquista, olhando-se pelo prisma histórico, não pode ter sido nada fácil.
Se a realidade carrega essa limitação, a fantasia segue voando livre e solta. E uma de suas possibilidades mais fascinantes é justamente a de explorar o caminho não trilhado, aquele que foi preterido em favor de alguma outra escolha. Partindo-se de uma história real, não é difícil imaginar quantas variantes possíveis ficam gravitando em torno dela à espera de que alguém um belo dia as descubra e liberte do limbo virtual. Obras excelentes já nasceram desse exercício. Às vezes, um único detalhe pode levar à desconstrução de toda uma história conhecida e fazê-la parecer nova em folha.
Ian McEwan demonstra ter um especial apreço por esse mesmo jogo, ainda que partindo da ficção – o que o torna menos óbvio ou mais sutil -, sempre quando sugere ao leitor que o que está sendo contado também poderia ter acontecido de forma diferente. Ou, noutras palavras, que a trama tecida com esmero de ourives apóia-se em pontos delicados cuja ruptura a faria vir abaixo. Quase paradoxal é a constatação de que a solidez do discurso desse que é um dos grandes escritores ingleses da atualidade deve muito a essa aparente fragilidade. Algo como o ginasta que aposta anos de trabalho na precisão de um único salto, no qual, naturalmente, não pode falhar. Mas não se pense, a partir da analogia, que McEwan é dado a acrobacias, tanto estruturais quanto estilísticas. Estamos diante de um autor que prima pela sobriedade e pelo bom gosto. E é com um olhar sempre elegante que prefere perscrutar a vida interior de seus personagens a vê-los em ação.
Equívoco
Como se sabe, no magistral romance Reparação, de 2001, o conflito se estabelece a partir da interpretação equivocada de uma cena que a protagonista sem querer presencia. A situação não é obviamente fortuita: concorre para a confusão os treze anos de idade da personagem, período de turbulência na vida de qualquer ser humano, e no momento em que suas pretensões literárias começam a tomar corpo, ameaçando a estabilidade do mundo perfeito até então idealizado por ela. Uma passagem é emblemática:
Era uma tentação para ela mergulhar no mágico e no dramático, e encarar a cena que havia testemunhado como algo encenado só para ela, uma moral especial para ela envolta num mistério. Mas sabia muito bem que, se não tivesse se levantado na hora exata em que se levantara, a cena teria acontecido assim mesmo, pois nada tinha a ver com ela. Apenas o acaso a levara a se aproximar da janela. Aquilo não era uma história de fadas, era a realidade, o mundo adulto em que sapos não falavam com princesas e onde as únicas mensagens eram aquelas que as pessoas enviavam.
Em Na praia, seu mais recente livro, McEwan chega outra vez ao mesmíssimo ponto, só que agora partindo de um tema e uma situação mais próximos do banal – o que, é claro, só faz aumentar o risco do exercício. Para um ficcionista de escol, contudo, não existe história trivial. Tampouco parece existir dificuldade, muito embora saibamos que, num texto de qualidade, ela jamais ficará exposta.
A comparação entre os dois livros, mais do que procedente, é inevitável. Em grande parte, porque se sabe que vários fãs de Reparação leram Na praia sem o mesmo entusiasmo. Isso é o que costuma acontecer quando se lê uma nova obra tentando encontrar nela a continuação de outra que tenha muito agradado. No presente caso, as diferenças ficam de fato bem mais evidentes que as semelhanças. Se Reparação é um romance clássico na forma e exuberante pelo que investe nos detalhes, Na praia apresenta a contenção e o despojamento típicos da novela (são 446 páginas do primeiro contra menos de um terço disso no segundo, embora a medida para a distinção entre os gêneros não seja bem essa; tampouco surpreenderia se o próprio autor considerasse Na praia um conto…). A trama cheia de surpresas e reviravoltas do romance contrasta com a narrativa bem mais linear e direta da novela, o que também é um fator de desconforto ao leitor que se acostumou àquela outra forma. Agora, todas as fichas são postas na solução de um único dilema, anunciado já na frase de abertura:
Eram jovens, educados e ambos virgens nessa noite, sua noite de núpcias, e viviam num tempo em que conversar sobre as dificuldades sexuais era completamente impossível.
A objetividade não tira o encanto desta introdução: uma única frase capaz de resumir o que vai ser desenvolvido nas páginas seguintes e anunciar o principal conflito da trama. Estamos em 1962, no jantar a dois que precede a noite de núpcias de Edward e Florence numa praia do sul da Inglaterra, a Chesil Beach referida no título original da novela. Numa estrutura in media res, o leitor é apresentado ao jovem casal. Edward, recém-formado em história, vem de uma família provinciana e de poucos recursos; o pai, professor do ensino médio, lutou desajeitado e sozinho para administrar a casa e criar os filhos, funções negligenciadas pela mulher por causa de uma doença mental. Florence, ao contrário, nasceu numa bem estruturada família londrina; a mãe, professora de Oxford, e o pai, rico industrial, cuidam para que nada lhe falte enquanto ela vai construindo sua carreira de violinista. À parte algumas sutilezas que tiveram origem na diferença de classe social dos recém-casados, o nó górdio está nas expectativas de ambos quanto à consumação do casamento. Edward conteve até aqui seus impulsos sexuais em respeito à postura arisca de Florence e também a sua condição social superior, que de certa maneira o intimida; ela, na realidade, sente uma repulsa doentia por sexo e, embora ame sinceramente o homem com quem se casou, chega apavorada ao grande momento. O suspense está todo concentrado na solução desse imbróglio. E, mais uma vez, ela vai surgir de um fato menor mas que poderia facilmente ter ocorrido de modo diverso, levando a outro desfecho. Eis aí o ponto de contato mais forte entre as duas obras: o quanto uma história depende de uma pequena decisão sobre algo que não se refere a ela diretamente, tornando-o assim imponderável.
A concorrência de outros dois fatores, ambos anunciados na frase inaugural e umbilicalmente relacionados, é decisiva para a trama. O primeiro deles, o cenário de uma Inglaterra ainda presa à desgastada moral vitoriana e à beira da revolução sexual que eclodiria logo adiante na mesma década. O segundo, a falta de diálogo sobre questões que, se continuam difíceis de ser abordadas, hoje certamente teriam vindo à tona bem antes de uma noite de núpcias. E aqui se chega outra vez à velha questão da incomunicabilidade, o mais freqüente motivo dos desacertos humanos.
“Concentrada como uma peça musical de câmara”, na inspirada avaliação dos editores constante da orelha, Na praia é uma leitura imprescindível a quem busca consistência e refinamento literário. A sóbria e como sempre bem cuidada edição da Companhia das Letras e a bela tradução de Bernardo Carvalho estão à altura dessa obra da maturidade de um autor genial. Depois dela, fica mais difícil prever o que McEwan ainda vai nos reservar.