Sobre dia do juízo

Dia do juízo foi publicado em 1961 pela José Olympio e pertence à segunda fase da obra de Rosário Fusco
Rosário Fusco, autor de “a.s.a. – associação dos solitários anônimos”
01/08/2003

Sete dias gastei para fazer a terra que os senhores transformaram nesta lamentável droga. Encareço os sete dias para mostrar meu capricho: poderia tê-la formado com sete fiats.

(Rosário Fusco, 1961)

Dia do juízo foi publicado em 1961 pela José Olympio e pertence à segunda fase da obra de Rosário Fusco, quando, aos 51 anos e após larga militância literária, dava ao seu discurso ficcional maior sedimentação e aparato narrativo.

Rosário Fusco participara em 1927 do Movimento Verde, vertente interiorana do Modernismo em Cataguases (MG), e partira nos anos 30 para o Rio de Janeiro com incursões posteriores pela Europa e América Latina.

Vencera as inspirações iniciais para a poesia, o teatro e a crítica, entregando-se mais tarde às narrativas longas, seu verdadeiro campo de experiências.

As primeiras luzes vindas das teorias do russo Mikhail Bakhtin que se jogar sobre o romance Dia do juízo vão captar em qualquer ponto do livro — porque estão em toda parte — aquelas vozes, risos e paródias invocadas pelo crítico russo em seu proficiente arsenal teórico.

Todas elas envoltas numa teia carnavalizante, que fazem de nosso romancista um misto de Henry Miller, Hemingway e Dostoievski ambientado nos trópicos, contudo sempre em versão original e criativa.

Para esta análise sob o crivo de Bakhtin, concentrei-me em dois pontos importantes de suas teorias: a Sátira Menipéia e a Carnavalização.

Criada pelo filósofo grego Menipo no século 3 a.C., a sátira menipéia, esse tipo de farsa que abriga o popular, o erudito e o burlesco ao mesmo tempo, foi o ponto de partida para que Bakhtin chegasse à literatura oral e à cultura popular.

Inspirado também na cultura popular, como o próprio nome indica, a carnavalização mostra na literatura as características de ambigüidade e travestimento de linguagem oriundas da linguagem do povo.

O romance em exame

São motivos vindos de fora que nos obrigam a agir… pode-se prever muita coisa neste mundo, menos a vontade… no fim a gente é vivida, mas não vive coisa nenhuma.

(Fusco, 1961)

O romance Dia do juízo se situa numa fase intermediária da produção de Rosário Fusco e o mostra inteiro, dono de estilo sui generis. Considero sua terceira fase aquela em que, transferindo-se para Cataguases (1967), escreveu seus últimos romances: Vacachuvamor e a.s.a — associação dos solitários anônimos (ler textos à página 4).

Bakhtiniano por excelência, o livro é um caudal de vozes e atmosferas dissonantes, recheado de personagens estranhos, quase todos habitantes do bas-fond das grandes e das pequenas cidades.

Gira a trama do romance em torno de dois personagens principais: Primavera, mulher nova na faixa dos 20 anos; e Jandorno, um velho assassino e viciado em todas as misérias da época. Os outros personagens são Mainenti, um homossexual; Ernesta, dona de um bordel e alcoviteira; e um elenco formidável tirado do submundo: contraventores, macumbeiras, quiromantes e rufiões.

Na linha de fundo, um narrador onisciente manejando e sendo levado pelos personagens, e, na boca de cena, Deus, verdadeiro personagem principal, que, durante toda a ação, é questionado, sondado e posto em xeque pelo narrador e pelos personagens.

A ação propriamente é um vaivém de sobressaltos e intrigas, com marchas e contramarchas no tempo e no espaço, em que o autor não obedece a uma narrativa linear e as interferências do narrador pontuam ininterruptamente as cenas.

Trata-se, portanto, de excelente material para a análise bakhtiniana.

No reino de Bakhtin

— […] basta de conversa. Acabou-se. Vou-me embora; e é já.

— Vá. Deus que a acompanhe.

— Não preciso. Tenho acompanhante. (Fusco, 1961)

Se as vozes que “atormentam” o narrador forem a recíproca das que ferem os ouvidos de seus personagens endemoninhados, só essa constatação já nos remete à obra de Bakhtin, e não precisaríamos de mais nada para caracterizar o romance Dia do juízo.

Mas, além de todo um reino de criação que se levanta do dialogismo e do plurilinguismo — com vozes que emergem e se cruzam —, podemos detectar facilmente no livro a paródia, a polifonia, a sátira menipéia, a carnavalização e quase tudo o que Bakhtin avaliou em seu universo crítico.

Nos 30 capítulos em que se divide a obra, no entanto, a carnavalização predomina sobre as demais características, se transformando em um pano de fundo sobre o qual “corre” uma narrativa convulsa e febril.

Enquanto, por outro lado, a sátira menipéia é o novelo de cujo material o autor se serviu para fazer deflagrar quase todas as cenas e diálogos do romance.

Envolta no plurilinguismo, de onde ressaltam os variados discursos, sempre à procura da bivocalidade, é a sátira menipéia que funde o discurso de outrem à linguagem de outrem, revelando até as intenções do autor, como na fala da dona do bordel Ernesta:

[…] para Ernesta Passos era decente o par (legal ou não) que, ao fechar-se no quarto, não se punha a resfolegar, bulindo com os nervos do cristão que ficasse de fora. A identidade casal não a preocupava, porque ‘quem age na cama de um jeito, desse jeito age na vida’.

Na mesma cena, ela permanece agora sob a forma do cômico, quando a consideração inicial evolui:

[…] jamais recusara quaisquer fornicadores a varejo, que a procurassem pela primeira vez. Inquilinos fixos, porém, não a interessavam. Sua casa era só de descanso: ‘um alívio, como se diz’. Acolhera Jandorno e Primavera por deferência ‘à órfã…’, mas deles exigia, por isso mesmo, e com redobrada severidade, o cumprimento de sua lei.

Ou quando o narrador descreve as atitudes do vigário da cidade, misturando o cômico e o religioso para criar o grotesco, tal como se vê em Bakhtin:

[…] a especialidade do quase vigário era efetivar as uniões, celebradas sob a luz das estrelas e a conivência do mato.

Em Dia do juízo, o desafio ao bom-tom traz outro item da sátira menipéia, a que ainda acrescenta a paródia bíblica, em meio ao popular (gíria). Bakhtin elevado à enésima potência:

[…] Abraão deu uma espiada nos campos, montes e vales. Depois parlamentou com Deus. O que conversaram não se sabe. Após a longa entrevista, fez um altar pra Jeová e picou a mula (que, no caso era um camelo) no rumo do Negeb.

Mesmo expressando outro nível da fala, na dúvida entre crime e pecado, vício e virtude, o tom satírico emerge por detrás da consciência do autor, tornando cada vez mais complexa a tessitura crítica de que se compõe o texto:

Cá comigo, tenho minhas dúvidas, que só poderei solver — ai de mim — no dia do juízo. O antinatural não será, na opinião do Artista, apenas o reverso do natural, o seu outro lado, e não o contra?

Ou nesta passagem igualmente bíblica e humorística:

— […] Guarde o corpo da senhora para os vermes: o seu corpo. Para os vermes e a ressurreição. O meu tem dono.

— Primavera, não diga isto, louca. Está possessa, louca.

O tom oral sempre lembrado por Bakhtin é incorporado ao texto do narrador, tendo a palavra narrativa emprestada às considerações sobre a fala do personagem:

— Pode continuar, bem.

Soldou um suspiro ao corpo da narrativa:

— O troço é como eu sempre digo: nunca se sabe o que nos liga a um colega, extraviado na crosta terrestre. É isso mesmo: crosta terrestre. A gente fala com ele: uma, duas, três vezes, e pronto: as vidas da gente se embaralham de tal jeito que tocar no mingau é pior.

Outro item da sátira menipéia, a fusão entre conceitos filosóficos, religiosos e populares comparece no ambiente do lupanar, na tentativa de compreender, de “jogar uma luz no entendimento”, tudo mostrado em contrastes violentos (sátira menipéia):

O que é justiça? Valor. O que é valor? Coisa que vale, dizem. Mas se a justiça é factível, isto é, troço que se fabrica, ela pode ser bem-feita ou malfeita, é ou não é? Imagine a terra desabitada, sem um único estabelecedor de relações para o infinito número de trens que a atravancam: qual deles valeria mais, menos, ou simplesmente valeria?

Na república de Fusco
Não só nos itens de carnavalização e sátira menipéia, que procuramos ressaltar aqui, mas cumpre notar também, que, algumas vezes em Dia do juízo, ocorre uma simultaneidade das muitas conceituações de Bakhtin em um único episódio, como no monólogo da minhoca, que recebeu “outorga do Alto” para parodiar a retórica dos sermões religiosos, travestida num Deus onipresente e onisciente:

Antes de mais nada, quero censurá-los pela leviana invenção de que os fiz à minha imagem e semelhança. Se assim fosse, como eu poderia arrepender-me de os haver criado? Notem bem, mais do que mero ensaio de sovetage, o Dilúvio foi, e é, prova do meu arrependimento por tê-los criado. Com ele, entretanto, não interrompi a vida no planeta, como sabem: apenas afoguei os maus elementos e deixei a barca correr.

Nele, o autor aproveita para cruzar o discurso de outrem, no caso, um corte ao célebre intertexto de Jean-Paul Sartre (em seu romance A idade da razão) com a Bíblia, não se podendo esquecer a sátira que permeia o discurso:

Agora, uma coisa: os senhores é que me fizeram à sua imagem e semelhança, néscios. Onde já se viu Espírito fazer anos, deixar crescer barba e cabelo, andar de camisola entre os astros? Homessa. Também nunca lhes mandei recados através de profetas, oráculos, pitonisas, astrólogos, cartomantes, radioestesistas, videntes, médiuns, quiromantes, macumbeiros ou que rótulos se tenham atribuído os membros dessa internacional e eterna casta de vigaristas. […]

O discurso continua, anexando provérbios e ditos populares, associando humor e paródia, em ritmo carnavalizante, bakhtinianamente, até o fim:

Acreditem que mesmo os oxiúros, da raça dos vermes, também queridas criaturas, aspiram ao reino dos céus: e nele entrarão, prometo, quando se tornarem borboletas. O repouso que procuram, ó insensatos, mora no seu próprio peito… ou não notaram, preocupados com o vencimento de duplicatas, aluguéis e álacres colombinas? Bem, Jeová, onde é que você vai instalar este mutirão de recauchutados inocentes? […] à carne o que é da carne, e ao espírito o que é do espírito.

Aliás, é nesse discurso/monólogo, que vai da página 236 à 250, no capítulo 28, que um Deus-personagem toma o lugar do narrador e assume a narrativa em minucioso e interessante discurso moral, como um Moisés cibernético, e onde se encontram todas as características do dialogismo e em que interferem a carnavalização, a sátira, a paródia e a polifonia romanesca. Um cardápio completo com direito a sobremesa, associado à mistura das noções de céu, terra e inferno como descreveu Bakhtin. Para arrematar assim:

[…] se às moradas do Pai o Filho se refere, e por moradas entendeis plurais moradas, quantos céus, nas alturas, haverá?

Vede em Lucas o que disse o Mestre, e ruminai o metassunto: pra valer.

Aviso: a não ser que prefirais o inferno ao céu (pois há gosto para tudo, e o inferno de muitos — ó preciosa liberdade de escolher — é o céu de inumeráveis), de nenhum modo, e nem por isso, deveis descuidar-vos em vida, tendo presente que o vosso reino, este, aquele ou aqueloutro, começa no lugar em que tiverdes apoiado os pés.

Que, até lá, a existência vos pese menos do que uma pá de cal.

Saudações e paz.

Considerações finais
Nada melhor para localizar e desenvolver as teorias de Bakhtin do que os bons autores. E mais ainda este livro de Rosário Fusco, sabendo da profusão de sua criatividade na arquitetura da trama romanesca e no levantamento de uma linguagem que o coloca entre os escritores que precisam urgentemente ser mais conhecidos do público — universitário ou não — que se interessa por literatura.

O material que compõe Dia do juízo, tanto no plano estético como no filosófico ou lingüístico, é tão rico e avassalador — no que se refere às teorias de Bakhtin — que os exemplos saltam das páginas, como numa mina de ouro que se acaba de descobrir, e o veio precioso transparece à flor da rocha à espera do primeiro aventureiro que chegar.

Joaquim Branco
Rascunho