Dizer que um autor foi corajoso na produção de sua obra virou um clichê cujo uso indiscriminado, e quase nunca justo, acaba lhe tirando o sentido. O que exatamente significa ter coragem em literatura? Abordar sem constrangimentos os espinhos da matéria humana? Pois essa é uma característica inerente ao fazer literário e não, portanto, algo a ser ressaltado. Usar a vida pessoal como tema e não ter vergonha de expor intimidades? Isso a rigor seria um vício, e não uma virtude, posto que a ninguém interessa (ou deveria interessar) o umbigo do autor nem suas catarses. Ousar na linguagem? De novo, eis aí um valor indissociável do trabalho de criação. Criar significa também inovar, o que contempla necessariamente aspectos lingüísticos. (E nem precisaria aqui repetir que não há nada de corajoso em empregar sem critério palavrões e termos chulos, algo tão em voga hoje em dia mas que, confundido com transgressão, não costuma ir além do puro mau gosto.) A questão talvez seja semântica: coragem pode ser entendida como sinônimo de audácia ou ousadia. Mas de novo, em se tratando de arte, nem sempre o que se considera audacioso ultrapassa o limite do apenas necessário.
Segundo o Dicionário Houaiss, a primeira acepção para a palavra “coragem” é: “moral forte perante o perigo, os riscos; bravura, intrepidez, denodo”. E aqui chegamos finalmente ao que importa. Ter consciência do risco e desafiá-lo talvez seja mesmo um ato corajoso de quem se propõe a escrever para a posteridade.
O paranaense Wilson Bueno, assassinado em maio de 2010 aos 61 anos em sua casa, em Curitiba, deixou um legado importante, ainda que precocemente encerrado. Publicou quase duas dezenas de livros, experimentou formas e fórmulas novas, escreveu um romance, Mar paraguayo, onde mistura português, espanhol e guarani. Foi considerado um desbravador, um re-inventor da linguagem, características que fazem um especial sentido quando as barreiras entre os gêneros literários ficam a cada dia mais tênues. E, é claro, muitas vezes o adjetivo “corajoso” esteve associado a seu nome e a sua arte. Para saber se houve justiça nessa qualificação, nada melhor do que olhar para uma obra póstuma, o romance Mano, a noite está velha, publicado alguns meses após a trágica morte do autor e que pode ser visto como uma síntese de seu trabalho.
Com poesia
A orelha do livro, assinada por Ubiratan Brasil, de O Estado de S. Paulo, abre de forma emblemática: “a prosa brasileira perdeu parte significativa de sua poesia com a morte de Wilson Bueno”. E basta umas poucas linhas para que o leitor perceba exatamente ao que o jornalista se refere. Mano, a noite está velha tem de fato muito de poesia. Além disso, ele é, dentre os livros do escritor, o que mais apresenta traços autobiográficos. A estrutura é epistolar: trata-se de uma longa carta que o protagonista dirige ao irmão já morto e que se configura quase um acerto de contas, menos com o passado não muito tranqüilo que viveram e mais com as escolhas feitas pelo narrador ao longo da própria vida. E também com aquilo que ele não escolheu, porque muitas vezes são as contingências que traçam os caminhos. O começo é primoroso:
Mano, agora que você não morre mais, entabulo contigo esta conversa no escuro.
Como é difícil chegar a essa essencialidade. Umas poucas palavras que, postas de início, fisgam o leitor e o avisam do que está por vir. Bueno não explicita se houve um conflito maior entre os dois irmãos que tenha gerado um rompimento. Em dado instante, a homossexualidade do narrador motiva uma observação áspera do irmão, e talvez esteja ali a ponta do iceberg.
No sucinto resumo acima ficam evidenciadas algumas virtudes, mas também os riscos de quem se aventura nesse tipo de narrativa. O primeiro deles é um conceito relativamente novo, nem sempre bem compreendido e que atende pelo nome de prosa poética. Ora, prosa e poesia são formas literárias distintas que pouco têm em comum além da língua que compartilham. Isso não impede que uma possa usar eventualmente os recursos da outra, ainda mais agora que, como foi dito há pouco, os gêneros a cada dia se confundem mais. E nem há por que trabalhar com limites tão estanques, desde que o resultado convença. O perigo da prosa poética é ela desandar na pieguice ou ainda num discurso demasiadamente reflexivo, situações que afastam a narrativa de seu objetivo primordial — que é justamente o de narrar. Bueno sabe usar o recurso sem cair na armadilha, e é impressionante como o ritmo e a sonoridade de suas palavras funcionam como se fossem música, reverberando na cabeça do leitor depois de fechado o livro. Não se trata aqui, de forma alguma, de um aspecto secundário, mas de uma grande virtude estilística.
Pequenos excessos
Ainda quanto à linguagem, Bueno mescla discurso coloquial e erudição vocabular com rara competência — e essa é uma das características fundamentais de seu inigualável estilo —, o que não o impede de cometer alguns excessos. Observe-se o seguinte trecho, o segundo parágrafo do romance, que vem na seqüência daquela belíssima frase de abertura:
Tudo o que você foi, matéria aérea, desmancha-se no avesso; tudo o que, no estreito círculo de nosso ninho doméstico foi covardia, pequenez, submissão, assustadas miudezas, já contamina o que vai aqui feito a algaravia pesadelar dos farsantes. A mímica sem honra dos pusilânimes de raiz.
A impressão que se tem é a de que o autor não conseguiu se conter; extravasou, maculando a beleza inicial da frase com um crescendo de termos pomposos e pouco objetivos. Outro exemplo é o vetusto adjetivo “merencório”, cuja mais famosa participação nas letras nacionais remonta ao ano de 1939, nos versos de nosso segundo hino nacional, a Aquarela do Brasil de Ari Barroso. É o tipo de palavra que, caso o autor não consiga mesmo resistir à tentação de usar, vá lá, deve fazê-lo então uma única e especialíssima vez num romance inteiro. Pois Bueno a emprega nada menos do que quatro vezes em Mano…, transformando-a num cacoete que, pior dos piores, soa pedante. A alternativa talvez funcionasse melhor se o caráter da obra fosse cômico, o que decididamente não é. Exemplo também é o horrendo “pesadelar” que, depois de debutar no segundo parágrafo, consegue a proeza de dar as caras outras quatro ou cinco vezes no decorrer do livro, sempre causando o mesmo efeito deletério.
A abundância de vírgulas — algumas impossíveis, como as que separam sujeito de predicado de uma oração — prejudicam, em alguns trechos, a fluidez do texto.
Soluções e bordões
Um segundo risco importante assumido por Bueno é a opção pelo confessional. Seria pouco provável que a simulação de uma conversa séria com um irmão já morto pudesse fugir disso, pois a motivação de quem a escreve por si só já indica o rumo que o discurso irá tomar. E não há nada de errado com isso, desde que o tom intimista não descambe numa lengalena monótona e interminável que é justamente o perigo dessa forma narrativa. Bueno consegue, até certo ponto, driblar esses entraves com as armas de experiente ficcionista que adquiriu durante a vida e pôs a funcionar a todo vapor em sua derradeira obra. Ele sabia muito bem que nada substitui na ficção uma história bem contada. Se o entrecho é de natureza confessional, a solução será então recheá-lo com histórias paralelas mais dinâmicas e interessantes — e a estrutura multifacetada do romance permite esse tipo de solução. As aventuras de infância que compartilham os dois protagonistas, o abate mal-sucedido de um porco ao qual se apegaram como a um animal de estimação, os dilemas do narrador com a própria homossexualidade e, a cereja do bolo, a alta carga de erotismo em alguns momentos formam o combustível necessário para que a trama se movimente e segure o leitor durante toda a primeira metade do livro. A partir dali, a recorrência das mesmas soluções — e de alguns bordões criados para reforçar o caráter intimista — pende em direção a uma indesejada monotonia e leva o romance a um final que teria tudo para ser poderoso, mas que resulta sereno.
(Uma pequena e desimportante curiosidade: o mote desta resenha foi dado pelas primeiras palavras do último parágrafo do livro:
Novo esforço, nova soma de mais audácia do que coragem, levei a mão à testa Dela.)
A despeito das pequenas imperfeições assinaladas, Mano, a noite está velha é um romance bem estruturado e, sobretudo, bem conduzido. Obra da maturidade de um autor que, como observa a escritora Ivana Arruda Leite na contracapa do livro, não deixou seguidores. Sua estúpida morte abre um vazio na literatura brasileira contemporânea.