Sobre casas, polifonias e falsos finais

Em "Os afetos", o boliviano Rodrigo Hasbún percorre os laços íntimos que permeiam as relações familiares
Rodrigo Hasbún, autor de “Os afetos”
28/09/2016

É como se a casa, ainda que planejada com todo o esmero que tal tarefa exige, terminasse erguida sobre um terreno de areia: as duas ideias inspiradoras deste texto, cada qual a seu modo, acabaram por se revelar não inteiramente verdadeiras. A orelha do livro sobre o qual se falará chamou a atenção para a primeira, o caráter polifônico da obra, um desses conceitos em torno do qual é possível se desenvolver um tratado; para inspirar uma simples resenha, então, caía como sopa no mel. Tomado de empréstimo da música onde, grosso modo, refere duas ou mais vozes com identidade melódica e rítmica individuais que são ouvidas simultaneamente, o termo polifonia, quando transposto para a literatura, só pode ser compreendido num sentido figurado — e portanto falho, segundo a mais estrita lógica. É que o ouvido consegue distinguir melodias diversas e simultâneas e entender isso como música, inobstante qualquer complexidade — uma fuga de Bach está aí a mostrar quanta beleza pode render essa técnica —; já os olhos, por mais que se tente treiná-los, não aprendem a ler mais do que uma linha escrita de cada vez. Entretanto, vários autores vêm tentando obter um efeito polifônico na prosa ao intercalar vozes narrativas de diferentes maneiras e com diferentes propósitos, embora isso nunca deixe de ser um simulacro de polifonia, aquela que ainda se espera um dia possa acontecer de verdade. A propósito, há exemplos magistrais de polifonia narrativa, como no romance Pantaleão e as visitadoras, de Mario Vargas Llosa, ou no conto Umbilical, de João Anzanello Carrascoza, dentre vários outros.

A segunda ideia inspiradora foi a de que toda a suntuosa construção do romance Os afetos, primeira obra do boliviano Rodrigo Hasbún lançada no Brasil, converge brilhantemente para o ponto mais importante de qualquer peça literária: o final. E aqui a boa ideia foi traída por outra ligeira falsidade: depois do que poderia ser um último parágrafo, a história prossegue por mais um capítulo inteiro com o texto grafado em itálico, na clara intenção do autor de fazê-lo um apêndice ao principal — afinal, é o único no livro a merecer tal tratamento gráfico.

Como, na ficção, verdade e mentira têm valor relativo, preserve-se o falso e as boas intenções, não percamos mais tempo com digressões angustiosas do resenhista e vamos logo ao que interessa.

Fatos reais
Os afetos baseia-se em personagens e fatos reais — o que, repita-se, em se tratando de literatura tem importância apenas como curiosidade. Após a derrocada da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, a família Ertl deixa Munique para se exilar na Bolívia. Hans Ertl, que fora cinegrafista de Leni Riefenstahl, a cineasta dos documentários de propaganda nazista e a preferida de Hitler, chega a La Paz em 1955, trazendo a mulher, Aurelia, e as três filhas, Monika, Heidi e Trixi. Homem de temperamento irrequieto e espírito aventureiro, aqui logo desencava a lenda da cidade inca perdida de Paitití e se lança em diversas expedições com o objetivo de encontrá-la, arrastando com ele, algumas vezes, a mulher e as filhas. (Na vida real, Hans Ertl empreendeu de fato três expedições na Selva Amazônica, mas seu propósito, ao que consta, era produzir documentários; na última delas, episódio narrado no livro, um acidente destruiu quase todo seu material de filmagem, o que o fez desistir definitivamente da profissão para virar fazendeiro.) As aspirações algo quixotescas de Hans, as diferenças culturais que a família enfrenta ao se mudar para a nova pátria e as turbulências políticas da Bolívia nas décadas de 60 e 70 são ingredientes adicionais de um entrecho rico em possibilidades. A completar uma lista de conflitos para nenhum romancista pôr defeito, Monika, a filha que o pai desejava que tivesse nascido homem e se tornou a favorita, acaba envolvida com a guerrilha boliviana e vira alvo da perseguição dos militares em poder no país.

O avanço da história pelo caminho escolhido por Hasbún ilumina e torna simples questões de extrema complexidade que permeiam as relações familiares.

O breve resumo acima sugere um romance de ação e aventura, com as feridas ainda abertas das crueldades perpetradas por mais uma ditadura latino-americana dando um tom pesado e talvez sangrento à trama. Entretanto, não é esse o objetivo do autor. Contrariando as expectativas, Hasbún deixa de lado os apelos mais óbvios de sua história para investir naquilo que anuncia desde o título. Assim, as peripécias do alemão Hans Ertl e de sua família de mulheres exilados numa pobre e conturbada Bolívia, trajetória que perpassa quase meio século desde a chegada até a morte do cinegrafista em 2000, serve apenas de luxuoso pano de fundo ao principal: desvendar como foram estabelecidos os laços afetivos que unem esses poucos personagens, com foco no núcleo familiar e o apoio de alguns coadjuvantes.

Cada capítulo é escrito de forma distinta do anterior, uma diferença às vezes tão sutil que quase passa despercebida. É o caso da alternância sistemática do narrador: como a voz predominante é em primeira pessoa, ele muda a cada novo capítulo sem que o leitor o perceba de imediato (ou pelo menos não na primeira vez em que isso ocorre). As três filhas de Hans ganham as vozes principais, assim como o cunhado de uma delas, esse brindado com a forma de discurso mais peculiar do romance. Mas há também alguns capítulos (poucos) narrados em terceira pessoa. A ausência de Hans entre os narradores é emblemática. Se desse voz ao patriarca, o viés da história do qual Hasbún procura fugir viria inexoravelmente à tona, e uma visão algo heroica que o personagem talvez guarde de si próprio poderia se sobrepor à delicada urdidura tecida pelos solos das filhas. O mesmo aconteceria se Aurelia decidisse abordar a história pelo ângulo de seu infortúnio, e não se deve nunca desprezar as toneladas emocionais de um relato de mãe e esposa sofredora.

Memória afetiva
A delicadeza melancólica que Hasbún consegue extrair de um enredo que se pressupõe mais propício a outro tipo de abordagem deve muito à tessitura feminina das vozes de suas principais narradoras, mas também a outra notável característica: o romance estrutura-se a partir da memória afetiva de três mulheres, resgatada quase cinquenta anos após sua chegada à América Latina. Essa é a perspectiva temporal da narrativa. Seria natural, por exemplo, que as agruras da adaptação de uma família alemã à sua nova e tropical realidade tivessem tido um peso maior para o casal (e especialmente para Aurelia) do que para as filhas à época adolescentes, essas que poderiam inclusive ter encarado esquisitices terceiro-mundistas como uma grande e divertida aventura; acompanhar o pai numa de suas expedições pela Selva Amazônica, por exemplo, poderia ter sido a maior de todas. Filtrada pelo passar dos anos, a realidade que brota das entrelinhas (e, em alguns momentos, de forma explícita) se mostra um pouco diferente. Por outro lado, se a mãe se ressentia da ausência constante do marido, esse é um dado que a memória de uma das narradoras trata de forma quase poética, como se pode ver no trecho escolhido para ilustrar esta resenha.

Mas os laços de sangue, que se imagina sempre fortes a ponto do indestrutível, podem muitas vezes se esgaçar e ir paulatinamente afastando aqueles que mais próximo um dia estiveram — a família é pródiga nesse tipo de conflito. O avanço da história pelo caminho escolhido por Hasbún ilumina e torna simples questões de extrema complexidade que permeiam as relações familiares. E aqui se chega ao belíssimo parágrafo final do livro, aquele que está colocado algumas páginas antes da última e sobre o qual mais nada se adiantará. Não seria justo sonegar o prazer de sua descoberta ao futuro leitor.

Aliás, a ideia de ler como apêndice esse último capítulo pode estar a serviço de uma bela metáfora, outra de tantas possíveis de se extrair de um romance tão cheio de sutilezas como a alma das mulheres que o inspiram: Os afetos é uma daquelas raras obras que não terminam na última página, mantendo o pensamento e a emoção do leitor acesos por muito tempo após a chegada ao ponto final.

Os afetos
Rodrigo Hasbún
Trad.: José Geraldo Couto
Intrínseca
125 págs.
Rodrigo Hasbún
Nasceu em Cochabamba, Bolívia, em 1981. Tem publicados três livros de contos, um volume de histórias selecionadas e dois romances. Foi eleito no Hay Festival de Bogotá em 2007 um dos 39 escritores latino-americanos com menos de 39 anos mais importantes do continente. Os afetos, seu mais recente romance e primeira obra publicada no Brasil, teve direitos de tradução vendidos para dez idiomas. Hasbún mora em Houston, Texas.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

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