Para que serve afinal uma antologia?
Durante os dois ou três dias em que estive envolvido com a leitura da recém-publicada Antologia de contos da UBE, a pergunta não me saía da cabeça. Quando soube do lançamento, tive um súbito interesse pela obra. Por quê? Podia ser mero impulso, essas coisas acontecem. Mas por um livro do qual não tinha a menor referência? Confesso aqui abertamente ter sucumbido a um ataque de bisbilhotice: saber o que meus colegas pelo Brasil afora estavam produzindo no meu gênero preferido — e condensado num único volume, o que me garantiria uma visão panorâmica com um mínimo de esforço. Afinal, estamos falando de uma seleta com a chancela da União Brasileira de Escritores. Quanta mesquinhez e quanta ingenuidade! Ambas de minha parte, que fique bem claro.
Depois, o vazio meu velho conhecido. Às vezes um livro — e isso não implica nenhum demérito — não consegue suscitar de imediato uma idéia para a respectiva resenha. Dessa vez fiquei travado na primeira questão, enquanto algo me dizia que, encontrando a resposta, a idéia que me faltava viria com ela.
Fui ao dicionário. Sabia de antemão que em muitos casos classificam com um pomposo “antologia” o que é na verdade “coletânea”. A diferença entre as duas coisas é sutil, mas existe. Ainda assim, para não cometer injustiça, recorri ao bom e fiel Houaiss. E, como sempre acontece quando o visito, encontrei além do que procurava. Segundo ele, são quatro as acepções para a palavra “antologia”. A primeira, no contexto da botânica, é um singelo “estudo das flores”. Embora sendo uma descoberta singular e algo poética, ela pouco me ajudava no momento. Já a segunda fazia um pouco mais de sentido: “coleção de flores escolhidas; florilégio”. Que beleza! Na condição de jóias do reino vegetal, flores selecionadas evocam também a idéia de supra-sumo que eu imaginava. A terceira, enfim, chegava ao ponto: “coleção de textos em prosa e/ou verso, geralmente de autores consagrados, organizados segundo tema, época, autoria etc.”. E a quarta só fazia arrematar: “livro que contém essa coleção”.
Voltei então ao objeto da minha reflexão e descobri que a proposta era comemorar o jubileu de ouro da UBE com uma publicação que reunisse contos de vinte autores, oferecendo “um panorama das produções literárias contemporâneas por publicar escritores consagrados ao lado de estreantes e promissores”. Na apresentação, o presidente Levi Bucalem Ferrari explica que “o conto poderia ser inédito ou não e o tema era livre” e que “o livro contém o que cada autor considerou mais adequado ao tipo de publicação”.
Pelo visto, minha implicância não era assim tão infundada. A elasticidade dos critérios e o fato de cada autor participar com o que lhe pareceu mais adequado fizeram com que o conjunto final tendesse mais para miscelânea — de novo aqui, algo que não desqualifica o trabalho: uma singela “reunião de textos literários variados e freqüentemente de autores diversos numa mesma obra”, conforme ensina o Houaiss, vindo em meu auxílio mais uma vez.
Noção prejudicada
Pode parecer um preciosismo descabido, mas esse novo enfoque resolve alguns problemas. A começar pelo fato de que a UBE, de óbvia abrangência nacional, tem sua sede em São Paulo, e a grande maioria dos autores é paulistana de nascimento ou residente, todos ligados à entidade. Nada menos do que quatorze dos vinte trabalhos são inéditos, e os seis restantes foram publicados entre 1974 e 2007, um interregno desproporcional em relação ao todo (embora o ineditismo por si só não garanta que uma obra seja nova). Somando-se esses fatores, a noção de “panorama das produções contemporâneas” acaba um pouco prejudicada. E soa algo tendenciosa.
Livre do peso da denominação, contudo, o conjunto funcionaria melhor. Em linhas gerais, todos os contos são muito bem realizados, evidenciando o fato de que os autores, como não podia deixar de ser em se tratando de uma coleção dessa natureza, conhecem o terreno onde pisam e não se deixam apanhar pelas inúmeras armadilhas do gênero. Com exceção de Carlos Seabra, que optou por um conjunto de micro-narrativas — algo tão em moda nos dias de hoje e por isso mesmo uma escolha acertada —, todos os demais contos seguem a tradição no que diz respeito à forma e primam pela sobriedade quanto ao léxico. Nada sugere vanguarda. Não há ousadias formais, tampouco um único exemplo de prosa mais coloquial ou desbocada. Um ou outro termo chulo, e nada mais. Isso é estranho, pois São Paulo reúne atualmente um grupo importante de autores adeptos da linha a que se convencionou chamar de “transgressora”. Se não chega a fazer falta, pelo menos a falta intriga.
Mas a questão primeira continuava sem resposta, fosse a obra antologia, coletânea ou miscelânea. Uma imagem então me bateu: os coffrets de parfums, aqueles conjuntos com várias amostras de uma determinada grife. É quase impossível gostar de todas, ao mesmo tempo em que sempre se lastima as mais apreciadas acabarem tão rápido. Pois bem, o mesmo sentimento me sobrevinha a todo o momento no decorrer da leitura. Ao virar, por exemplo, a última página do primeiro conto, o ótimo A gata preta, de Ada Pellegrini Grinover, minha vontade era seguir no clima. A história de uma gata que se vinga do homem que a maltrata é um relato que evoca os causos de antanho num contexto mais atual e citadino — e quase nada tem em comum com o conto seguinte, O velho do cajado preto, do já falecido Aluysio Mendonça Sampaio, uma história de decrepitude com final de gosto duvidoso, publicada num longínquo 1974.
Bons exemplos
Outros bons momentos são três narrativas inéditas: A cabra, do alagoano Audálio Dantas, talvez a melhor da coletânea, que traz um pungente relato de infância e miséria ambientado nos confins do nordeste brasileiro; Mensageiro, de Levi Bucalem Ferrari, um entrecho criativo sobre um tema já meio gasto, envolvendo sexo, juventude e perseguição política nos anos de chumbo; e Antes que anoiteça, de Suzana Montoro, conto denso e de léxico primoroso, estruturado num único parágrafo, que fecha o livro. Destaque também para Amaryllis, de Anna Maria Martins, conto estranhíssimo que aposta na ambigüidade e se acerca da poesia, notadamente em seu parágrafo final. Estranheza e poesia também se mesclam em In Limine, de Beatriz Helena Ramos Amaral, produzindo belas passagens como a que abre o conto:
Há uma vaga idéia de água em quase tudo que amanhece. Se escapa, você tenta, nas gotas de vidro, fazer água. Espera na ante-sala, redesenhando as abas de um chapéu, aguardando o impacto das mãos primitivas que, a qualquer momento, poderão esmurrar o aquário.
Lygia Fagundes Telles, o nome mais importante da coletânea, participa com o curioso O dedo, publicado pela primeira vez há trinta anos. Embora não seja o melhor conto já escrito pela grande dama — seria praticamente impossível eleger-se um único a tal posição —, nele podem ser percebidas as marcas de seu estilo inconfundível. Ele funciona aqui como um porto seguro, em torno do qual se arranjam todos os demais.
A resposta finalmente chega, e junto com o desfecho da resenha. A Antologia de contos da UBE nada mais é do que um catálogo de bons autores onde o leitor poderá buscar referências para futuras aquisições. Como um coffret de parfums, todas as amostras são de qualidade. O gosto pessoal é o que vai balizar as escolhas.