Sob o véu da escrita

Resenha de “A noite dos calígrafos”, de Yasmine Ghata
Yasmine Ghata, autora de “A noite dos calígrafos”
01/10/2013

A escrita é a única forma perfeita do tempo, de acordo com o escritor francês J. M. G. Le Clézio. Antes dele, Henry David Thoreau também reconheceu que a palavra escrita é a mais fina das relíquias. Essas constatações nos fazem compreender a sensação de perfeição em A noite dos calígrafos, pérola literária de Yasmine Ghata.

A jovem Rikkat Kunt, protagonista e narradora do livro, é na realidade a avó da autora — avó que Yasmine jamais conheceu, uma das maiores calígrafas turcas na época em que Atatürk, o Lobo Cinzento de Ancara, decidiu romper com a religião e tornar a Turquia um país laico, para isso banindo o alfabeto árabe e inaugurando o uso do alfabeto latino.

Sem o resgate da autora, filha de Nour (o caçula de Rikkat), que mergulhou no estudo da história da arte e se tornou especialista em arte islâmica, toda uma geração de calígrafos eméritos da Turquia morreria sem voz, registro ou memória, assim como sua própria arte. O livro é, pois, uma história familiar que revela os passos da própria nação otomana, ainda hoje inconformada com o rompimento religioso e, sobretudo, com o banimento de seu alfabeto místico.

Nostalgia
Talvez pela intensa relação espiritual entre essa neta e sua avó, talvez pelo vínculo de sangue, cultura e herança remanescente, Yasmine pôde escrever um romance intenso e visceral, recontando a passagem do século 20 através do olhar atento e preciso de uma jovem mulher — sua avó — tão submissa quanto inconformada, tão moderna como profundamente religiosa, e ainda assim dotada de inigualável talento artístico. Da mesma forma que o espírito de seus mestres calígrafos, Rikkat permaneceu junto à sua neta-aprendiz, soprando-lhe as palavras exatas, de modo que Yasmine pudesse criar uma verdadeira obra-prima.

O romance é escrito de forma poética e refinada, extremamente sensível, com pequenos toques de ironia e crítica social e política, trazendo também uma releitura ficcional da vida de Rikkat Kunt. No livro, a jovem — ainda que consciente da crise e dos contratempos de tal ocupação —, em virtude de uma paixão inabalável pelos arabescos, ganha o primeiro lugar no concurso de caligrafia de seu país, algo considerado incomum em um métier tradicionalmente reservado aos homens.

De acordo com as crenças da jovem Rikkat, quem a auxilia em seus trabalhos e em sua luta diária contra as intempéries da vida são os espíritos de seus mestres calígrafos, Selim e Esma Ibret, que a acompanham no silêncio e na solidão do ofício. De Selim, o calígrafo mais idoso do ateliê que freqüentava, Rikkat herda o material inestimável e precioso da antiga caligrafia: um estojo de veludo grená, com cálamo, tinteiro e tinta de ouro. De Esma, ela obtinha inscrições em letras de luz nas paredes de seu quarto, indicando sua proteção. Outras convicções religiosas de Rikkat, entretanto, ondulavam no tempo como as ondas do Bósforo em sua vida, trazendo a nostalgia de uma existência sob o signo da tristeza e da mudança.

Intempéries
A noite dos calígrafos cobre um enorme salto temporal, que dista de 1933, quando Rikkat contava trinta anos e iniciava suas aulas, até 1986, quando a protagonista morre por asfixia, aos oitenta e três anos. Exibe, também, uma amplitude geográfica, pois Rikkat casa-se com o dentista Ceri e passa a morar com ele e o filho Nedim em Konya, no interior da Turquia. Voltando à sua Istambul natal e anunciando-se ganhadora do concurso, assume a cátedra de caligrafia na Universidade. Depois, já divorciada de Ceri, casa-se novamente com um albanês refugiado, Mehmet, com quem concebe Nour. Também Mehmet a abandona, levando consigo o caçula para o Líbano e, posteriormente, para a França. Rikkat reencontra seu filho muitos anos depois, ele já cursando Medicina em Paris. Esse encontro, em que convivem por quase duas semanas no mesmo apartamento, contando no cair de cada noite as histórias do tempo em que viveram a indesejada separação, é extremamente belo e doloroso. Nour foi, na verdade, depois da caligrafia, o maior amor de Rikkat.

De volta a Istambul, a protagonista ainda receberia o filho em seu yali (mansão típica à beira-mar, na margem asiática do Bósforo), reunindo-o à família — Rashida, sua mãe; Hateme, a irmã; e o primogênito Nedim — antes que o local fosse vendido para dar lugar a um prédio. Nesta história sobra muito pouco para confortar a protagonista: apenas a caligrafia, as aulas para poucos e raros aprendizes, o restauro de obras sagradas e a convivência com o espírito de seus mestres.

Em uma sociedade ainda fechada para os direitos das mulheres, com má sorte na escolha de seus companheiros, bem como nas exigências de seu ofício, Rikkat ainda assim atravessa com equilíbrio intempéries e ensina com doçura a beleza das tradições do Islã, religião geralmente demonizada em nossos dias por textos mal-informados e uníssonos, impregnados de discriminação pela mídia ocidental. Com esta personagem, é possível viajar em um universo de tempo e espaço absolutamente romanescos e distantes, escancarar uma janela para um mundo que não existe mais e sentir sua brisa e suas tempestades.

Resquícios de um universo
Histórias recentes da Turquia e da arte caligráfica otomana, com todos os seus segredos e misticismos, iluminam-se nas entrelinhas, através de cada frase, de cada capítulo, mesclando-se ao próprio espírito dos grandes mestres que, recusando-se a morrer, permanecem vivos animando os espíritos dos turcos, desenhando em suas janelas e paredes com uma escrita de luz, assombrando as noites de quem não pode deixar morrer suas próprias tradições.

Escrita e vida ricamente metaforizadas na caligrafia árabe se mesclam a esta narrativa romanceada e onírica. Com rara beleza e discrição, delicadeza e erotismo, A noite dos calígrafos desde as primeiras linhas exibe a alma da escrita em seus momentos mais sagrados: a escrita como emanação divina e como prazer carnal, e a arte caligráfica como a fonte mais pura e essencial do espírito e da cultura otomana.

A noite dos calígrafos
Yasmine Ghata
Trad.: Carolina Selvatici
Tinta Negra
112 págs.
Yasmine Ghata
Nasceu em 1975, na França. Estudou História da Arte na Sorbonne e é especialista em arte islâmica. A noite dos calígrafos (2004), seu primeiro romance, foi traduzido para treze línguas. Em seguida, vieram Le târ de mon père (2007) e Muettes (2009), que lhe renderam prêmios na Itália e no Líbano.
Paula Cajaty

É poeta. Autora de Afrodite in verso.

Rascunho