“A marca que assinala e diferencia a literatura de Ondjaki, e que se encontra caracteristicamente neste belíssimo Bom dia camaradas, é o lirismo”. Assim, no prefácio, Luiz Ruffato define o romance de estréia deste jovem escritor angolano.
O livro, publicado inicialmente em seu país, quando o autor tinha apensa 25 anos, é repleto do lirismo ao qual se refere Ruffato, um lirismo do olhar poético para as coisas do cotidiano que encobre parcialmente, como o véu das raivas de Drummond, utilizado como epígrafe, os embates pela independência e a dureza de um país em transição. Conta-se a história de meninos admirados com a liberdade de não mais se submeter ao domínio português, porém imerso num Estado totalitário socialista, em que não se pode sequer olhar por muito tempo para o dirigente do país, que ironicamente é tratado pelos habitantes como “o camarada presidente”.
O relato de Ondjaki remeteu-me a um muito recente filme argentino, Buenos Aires 100 km, em que cinco amigos experimentam desavenças e amores, sempre apresentados pelo filtro do laço eu os une, laços que os marcarão para toda a vida. O menino narrador de Bom dia camaradas tem orgulho de sua nação independente, mas não deixa de atentar para as peculiaridades da pátria que se constituiu: o racionamento de água e luz, os cartões que controlam o consumo limitado de alimentos, a presença dos professores cubanos, as seqüelas de uma guerra que dilacerou o lugar. No entanto, o tom que retrata os fatos passados é leve como a brisa que faz mover o abacateiro que, pela manhã, aos olhos do menino, espreguiça-se com lentidão, tomando conhecimento dos afazeres do dia.
O livro, que pode parecer ingênuo em alguns momentos, tem pontos de referência na literatura internacional: a Alice, de Lewis Carrol, que passa a achar qualquer coisa normal, diante das tantas novidades acontecidas nos últimos tempos:
Ê!, aqui em Luanda, não se pode duvidar das estórias, há muita coisa que pode acontecer e há muita coisa que, se não pode, arranja-se numa maneira de ela acontecer. Porra, aqui em Angola já não dá para duvidar que uma coisa vai acontecer…
Há ecos também do personagem de Salinger, em O apanhador no campo de centeio:
— Estás triste? — ela, sem saber se me abraçava.
— Não sei… Sabes, quando as despedidas começam nunca mais param, nunca mais param…
No prefácio, Ruffato aponta também referências de autores brasileiros, caros a Ondjaki: de Guimarães Rosa a Adélia Prado e Manoel de Barros. Porém os sinais de obras de referência são apenas pinceladas discretas neste trabalho bastante original, rastros de uma erudição presente num escritor maduro apesar da pouca idade.
A manutenção da grafia e das expressões do português de Angola são mais um ponto de interesse, que enriquece a publicação. Acredito que a aproximação do leitor brasileiro com os autores da África de língua portuguesa, e mesmo da literatura contemporânea escrita em Portugal, é de fundamental importância para o intercâmbio cultural entre as nações de mesmo idioma. Este trabalho, junto com alguns outros que têm sido publicados por aqui, por intermédio da parceria com o Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, pode representar um bom começo para que se estreitem as relações.
No desfecho da obra lê-se:
Ao ver aquela tanta água, lembrei-me das redacções que fazíamos sobre a chuva, o solo, a importância da água. Uma camarada professora que tinha a mania que era poeta, dizia que a água é que traz todo aquele cheiro que a terra cheira depois de chover, a água é que faz crescer novas coisas na terra, embora também alimente as raízes dela, a água faz ‘eclodir um novo ciclo’, enfim, ela queria dizer que a água faz o chão dar folhas novas. Então pensei: ‘Epá… E se chovesse aqui em Angola toda…?’ Depois sorri. Sorri só.
Contrapondo-se ao véu das raivas que abre o volume, à idéia de que numa república recém-fundada sobre os cadáveres de sangrentas batalhas, na qual velados são os ódios, os medos e mesmo os sonhos — mais turvos e nebulosos que velados, na verdade — surge a esperança de que as águas façam brotar uma nova vegetação, que povoe de verde e de luz um novo país. O romance de Ondjaki é esta pitada de esperança, pontuada pela voz de um menino que, pensando bem, gostaríamos que continuasse a existir lá no fundo, mesmo nos momentos mais desesperados surja com um sorriso matreiro a sugerir brinquedos de armar e esconder. Uma meninice meiga e cheia de coragem, lúcida e imersa no onírico desejo de viver um dia por vez, uma manhã por dia, sem deixar de acreditar jamais. E quem é que não precisa desta utopia?