Sob o signo da lua

Resenha do livro "O frio aqui fora", de Flávio Cafiero
Flávio Cafiero, autor de “O frio aqui fora”
01/04/2014

Há livros que nos pegam logo na primeira página, outros demoram a captar nossa atenção. Dificilmente abandono um livro assim que o começo, nem que para isso tenha de fazer um cronograma de leitura. Há autores assim. Thomas Bernhard, António Lobo Antunes, Herman Broch, por exemplo, exigem leitura lenta, superatenta, porque de outro modo os largaremos mal lidas as cinco primeiras páginas (se conseguirmos). Geralmente, quando o livro exige muito de mim, me obrigo a ler dez páginas por dia e vou aumentando o número à medida que a leitura ganha ritmo e interesse. Geralmente, quando o autor é bom, o esforço compensa. Por isso, leitores impacientes, não abandonem um livro assim que se depararem com o primeiro obstáculo.

Essa sensação de dificuldade me tomou quando comecei a ler O frio aqui fora, do estreante Flavio Cafiero. Ele faz parte da estante dos livros que o leitor pouco insistente abandonaria logo nas dez primeiras páginas. São realmente páginas árduas, duras, áridas mesmo, que nos fazem querer fazer qualquer outra coisa, menos continuar sua leitura. Confesso que só fui gostar do livro depois de entender que o importante para Cafiero não é a história em si, mas a forma como a conta, como se detém em cada sensação, em cada sentimento, tão difíceis de serem descritos. E nisso ele logo se revela um mestre. Há nele uma grande intimidade com as sensações experimentadas diante do vazio da vida, dos fatos mais banais, tirando deles certa claridade que ilumina a história. Poderíamos dizer que O frio aqui fora trabalha menos com a ação do que com a inatividade, a espera, as expectativas de uma personagem que parece em certo momento paralisada pela própria existência.

A trajetória de vida da personagem central, Gustavo Luna, não tem nada de empolgante. Estou falando da personagem. O andamento de sua história lembra mais um daqueles filmes da nouvelle vague como Trinta anos esta noite, do que os robocops que de tempos em tempos chegam a nossas telas.

Luna é funcionário de uma grande firma de importação de roupas, com mais de uma década de serviços prestados, uma carreira em ascensão, já é gerente nível 2, com possibilidade de ascender ao nível 3. Seu desconforto no trabalho é grande, mas não é só com o trabalho, é com a vida em si. Ele não consegue se encaixar nas engrenagens da empresa nem nas de uma vida sem nenhum sabor como a que leva, pois seu sonho é largar tudo e se dedicar à literatura.

O romance tem um pé na realidade, na história do próprio autor, que largou um emprego de mais de uma década para se dedicar à literatura. Mas o que interessa não é a relação vida/obra, pois se Cafiero ficasse só nisso dificilmente teríamos literatura. Seu trabalho com a linguagem apaga todo resquício biográfico. Ele constrói um livro a partir de sua própria vida, mas o salto para a ficção está na forma com que vai arquitetando a narrativa, no cuidado com a linguagem, que hora nenhuma decepciona.

Sem dúvida estamos diante de mais uma autoficção, gênero que vem proliferando em nossa literatura, ora para o bem, ora para o mal. Cafiero está no lado “bem”, pois não é nada fácil transformar em ficção uma vida vivida entre o tédio e o sonho. O leitor, se tiver a paciência de ir lentamente rompendo aquelas páginas que exigem tanta atenção tomará conhecimento de um novo autor, que mais do que se basear em sua a própria história, mostra-se comprometido com aquilo que é a base de toda literatura: o trato com a palavra.

Cada livro que lemos traz implícita a forma de lê-lo. Este pede que esqueçamos a história e atentemos para a forma como seu autor enuncia as coisas mais triviais, numa linguagem que parece simples à primeira vista mas que exige todo um trabalho literário. Mas não é só a linguagem que nos chama atenção em O frio aqui fora. É também a forma como Cafiero joga com o tempo. Ora estamos no passado, de repente passamos para o presente e também para o futuro, tudo isso feito com a segurança de um autor experimentado. O narrador também se mostra bem maleável, ora em primeira, ora em terceira pessoa, indo e vindo no tempo com uma aisance fora do comum. A instabilidade emocional da personagem se transfigura nessa forma narrativa também instável no tempo.

A história de Luna se entrega, assim, pouco a pouco, no movimento da própria linguagem e não dos fatos em si. O mal-estar existencial que o acomete vem da incompatibilidade de seus anseios de escritor e um emprego que nada lhe diz. Muito menos os colegas, as brincadeirinhas idiotas nos intervalos, os encontros rápidos de corredores, vazios de calor humano. Até a namorada com quem conviveu por cinco anos o abandona. Esse fato agrava mais a decisão de ele largar tudo e começar outra vida. A perspectiva de um filho também não o entusiasma. Seu sobrenome, Luna, é bem sintomático. Todo o livro é perpassado por uma melancolia que só faz crescer a cada página.

“Esperanças encalhadas num rio sem correnteza” são palavras de Luna a certa altura da narrativa que poderiam muito apropriadamente ser o título deste romance de clima tão soturno. Flavio Cafiero exige muito do leitor e, se este não o abandonar logo no começo, se sentirá recompensado ao chegar a última página deste seu romance de estreia.

 

O frio aqui fora

Flávio Cafiero
Cosac Naify
254 págs.
Flavio Cafiero
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1971, e mora em São Paulo (SP) desde 1994. Com formação publicitária, trabalhou doze anos como gerente de produto, tendo recentemente trocado a carreira de executivo pela de escritor. É também ator, dramaturgo e roteirista de cinema e televisão. O frio aqui fora é seu primeiro romance.
Antonio Carlos Viana

É escritor. Autor de, entre outros, Cine privé.

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