Sob o olhar delas

Júlia Lopes de Almeida traz para o primeiro plano personagens femininas em uma narrativa sobre a derrocada de um burguês do século 19
Júlia Lopes de Almeida, autora de “A falência”
30/09/2019

“Um quadro insignificante, ricamente emoldurado” enfeita a entrada do palacete da família Teodoro, eixo principal da ação do romance A falência, de Júlia Lopes de Almeida. Detalhe do cenário que pode fornecer um caminho de leitura a partir do destaque da argúcia da escritora na representação das inconsistências de seu tempo: a riqueza da família em meio à cidade empobrecida, a admiração por formas de poder que submetem, os resquícios perversos da escravidão, certo componente sádico na caridade cristã e o que o narrador chama de “insossa domesticidade” exigida das mulheres.

A fortuna dos Teodoro advém da atividade comercial de Francisco, imigrante português que reitera o valor do sacrifício e do trabalho, que o tiraram da miséria e permitiram a condição de vida opulenta de sua família. Curiosamente, tal concepção de trabalho jamais entra em choque com a admiração que o personagem sente pela monarquia e o consequente repúdio pela incipiente República. Justamente porque a mobilidade social não é lá traço característico de um regime aristocrático, a nostalgia do Império parece ser marca do tanto de vaidade que está implicada no acúmulo de seu patrimônio — o começar do zero e prosperar — e a posição da elite brasileira na construção do país. Talvez hoje Francisco seria um dos tantos que se dizem conservadores nos costumes e liberais na economia.

A trajetória de self made man dos trópicos está a todo tempo em tensão com as circunstâncias dos filhos, já nascidos em meio aos excessos da riqueza. O primogênito, Mario, é um boêmio desinteressado em herdar as responsabilidades pelos negócios, o que é um golpe na vaidade do pai, já que o valor do patrimônio está relacionado com o redimensionamento do nome da família — de Zé Ninguém a rico comerciante — e com a noção de legado que o sobreviveria. A expectativa só pode recair no único filho homem, uma vez que o pai acredita que o destino das mulheres deve se limitar a ser fiel ao marido e dirigir bem o lar.

Enquanto reafirma tal crença de papel feminino, sua esposa, Camila Teodoro, mantém um caso extraconjugal com o médico e amigo da família, Gervásio. O amante ainda é uma espécie de gestor nos assuntos relacionados à decoração da casa e mentor da educação das filhas do casal, particularmente de Ruth, a jovem com inclinações artísticas. Dos vários criados, duas mulheres têm particular destaque: Nina e Noca. A primeira é filha bastarda do irmão de Camila que, depois de ser abandonada pelo pai, assume o papel de governanta da família e não desfruta dos privilégios dos tios e dos primos. A segunda é a babá negra e generosa — a conhecida figura da empregada que é dita como quase parte da família — que criou todos os filhos do casal, enquanto a mãe se dedicava à leitura e, sobretudo, à vida social.

O desfecho da saga familiar segue uma direção inversa de mobilidade em relação à abertura. Quando a derrocada econômica se consolida, Francisco se suicida e o último homem, Teodoro, deserta as mulheres da família para viver um conveniente casamento com a filha de um barão — título que sobrevive ao sepultamento da monarquia, outra expressão da modernidade precária brasileira. Sem os excessos, resta a insignificância de uma existência cuja função do trabalho não é mais a de garantir a opulência, mas a de passar o tempo enquanto se sobrevive, como diz Nina no desfecho do penúltimo capítulo, sem a estrutura de uma rica moldura.

Derrocada
O título poderia ser lido a partir de um desencontro com a construção da temporalidade do romance. Isso porque a bancarrota só ganha corpo no décimo sétimo capítulo, de um total de vinte e cinco. O retardamento do acontecimento que nomeia o romance chama a atenção para a riqueza de composição do enredo, bem como provoca pensar que existem outras falências, além da que é precedida pelo artigo definido e determina os rumos dos Teodoro.

Em termos de composição, há uma primeira parte que segue mais ou menos cadenciada, de acordo com a rotina de excessos e intervalada pelo contraste entre o ritmo de vida da elite e o dos personagens marginais, que orbitam a família. Como os trabalhadores do armazém — e as respectivas condições de miséria a que são submetidos, remediadas com eventuais gestos assistencialistas do patrão —, as tias de Camila — tão religiosas quanto amargas, mantêm uma criada que recebe teto e restos de comida como pagamento, e é espancada pela ressentida enquanto a religiosa justifica a agressão como expiação de pecados —, entre outras subtramas. Elas são conduzidas por um narrador onisciente que passa pela introspecção dos vários personagens, truncada pelos parágrafos curtos e dinâmicos que compõem o romance.

A construção parece colocar em tensão a precariedade do processo de modernização do país. O trabalho visível e palpável da “força física, movida por músculos de aço e peitos decididos a ganhar duramente a vida”, que garantem os ganhos do armazém de Francisco, precisa de tempo para render frutos, enquanto o dinheiro invisível da especulação se desfaz rapidamente e deixa um rastro de perdas e de credores como efeito colateral. Se a falência da família é provocada pelo dinheiro desvinculado do trabalho, característica da especulação financeira, a persistência de relações de emprego que flertam com a escravidão bem como o papel que a religião assume para justificar a pobreza — “No Brasil não há miseráveis, há os ateus”, diz uma personagem que tem o título de baronesa — expressam outras falências, mais amplas, as de uma sociedade arcaica inserida à força no capitalismo.

Os ganhos instantâneos consistem numa variável importante para que a sedução do mercado de ações tome o lugar de certa relutância inicial, porque a narrativa de superação de Francisco e sua vaidade tornam insuportável a ideia de que outro vire o Rothschild brasileiro. No entanto, para que ele aceite a empreitada, a posição de clara “superioridade intelectual” que o personagem atribui ao autor da proposta de investimento é essencial. Enquanto Francisco é aquele que nunca dispôs de tempo para a educação, porque teve que trabalhar desde cedo, o conhecimento tanto assume o papel de oportunismo como de uma curiosa maneira de redenção. São dois os personagens que obrigam Francisco a admitir as respectivas “superioridades intelectuais”: Gervásio e Inocêncio Braga, o médico que usurpa o lar do patriarca e o amigo que o leva à ruína com os conselhos equivocados de investimento, respectivamente.

As mulheres
É na figura de Ruth que a educação e a cultura não servem ao engano. A jovem sensível e imaginativa, depois da falência, pôde usar a instrução como meio para ganhar a vida. E ela que tem um desfecho menos áspero em relação aos outros personagens: no último e breve capítulo é mencionado que a moça irá se apresentar em um concerto. Como se a ela, a única que se comove com a situação da prima Nina e de Sancha, a criada das tias, fosse permitida uma sutil redenção da rotina repetitiva de trabalho.

Ruth, aliás, mereceria maior cuidado. Limito-me aqui a destacar, a partir dela, a importância de resgatar este clássico e a peculiaridade da representação, por meio de uma voz feminina, de um período do qual se sobressaem, em geral, os homens. É interessante notar que o desfalecimento do idílio burguês, diferente de outros romances realistas do século 19, não é pago com a morte, mas com a obrigação de continuar vivendo cruamente uma rotina iterativa de mesmice.

Para as mulheres que sobrevivem à falência, ficar distraída é o que resta, uma vez que os supérfluos da riqueza se esvaem. Trata-se de uma aridez que toma certo modo de viver, desadornado tanto de bens quanto de fantasias amorosas. É diante disso que, para uma leitora do século 21, o desfecho de Ruth não poderia passar despercebido: depois que a solidez se desmancha no ar, para ela resta a arte, como ofício, mas também como algum excesso não domesticado pelo ritmo impiedoso do trabalho reduzido a cifras.

A falência
Júlia Lopes de Almeida
Unicamp
344 págs.
A falência
Júlia Lopes de Almeida
Penguin & Companhia das Letras
298 págs.
Júlia Lopes de Almeida
Nasceu em 1862, no Rio de Janeiro (RJ). Foi uma importante escritora brasileira, autora de romances, contos e livros infantis. A falência é sua quarta incursão pela narrativa de fôlego. Morreu em 1934.
Iara Machado Pinheiro

É jornalista e mestre em teoria literária.

Rascunho