Sob o olhar de Borges

Em "Confiança", o argentino Hernan Diaz utiliza com maestria a metaficção para contar uma história de forma talvez ainda inédita na literatura
Hernan Diaz, autor de “Confiança”
01/10/2023

Em Ficções, obra-prima de Jorge Luis Borges e um dos títulos mais importantes da literatura universal do século 20, o argentino antecipa em décadas ideias que parecem ter surgido ainda ontem. No já distante 1944, El Brujo renega a existência do tempo tal como o concebemos para apresentar o conceito de universos paralelos; imagina uma biblioteca infinita com uma estranha estrutura em andares hexagonais que emulam uma fórmula de química orgânica e que depois vai servir de inspiração à biblioteca medieval de O nome da rosa, numa reverência que Umberto Eco presta ao genial autor de O sul; mescla autores e obras reais com outras inventadas, e discorre com tanta propriedade sobre livros que nunca existiram fora de sua rica imaginação que chega a escrever resenhas de alguns deles, num magistral exemplo de metaficção, pois não existe exercício metaficcional mais perfeito do que criar uma peça de ficção cujo objetivo seja o de comentar uma obra que só exista na própria ficção.

Quase oitenta anos depois, outro argentino percorre um caminho similar àquele trilhado por seu ilustre antecessor e usa o mesmo artifício para contar uma história de forma talvez ainda inédita na literatura: Confiança, segundo romance de Hernan Diaz e merecedor do Pulitzer de Ficção 2023, é na realidade um conjunto de quatro peças de diferentes autores cuja vinculação se revela aos poucos, num roteiro cheio de surpresas — e aqui se fará todo possível para não as roubar do futuro leitor.

A primeira das peças intitula-se Ligações e é apresentada sob forma de um romance autônomo de autoria de Harold Vanner. Em suas quase 130 páginas está a trajetória de Benjamin Rask, descendente de judeus dinamarqueses que migraram no século 17 para a Escócia, onde deram início ao comércio de tabaco nas Colônias; de lá, parte da família veio para a América. Anos mais tarde, o pai prosperou muito nesse comércio, mas Benjamin, filho único e que nunca teve apetite pelo negócio familiar, nem por outra coisa na vida, demonstrou ter uma aptidão rara para as finanças quando ficou órfão e sozinho no mundo. No fim do século 19, o desacreditado e rico herdeiro de um patrimônio bastante sólido acabou por se tornar um gigante financista que dava as cartas e comandava o perigoso jogo das incertezas em Wall Street. A argúcia para esse tipo de atividade fez com que sua fortuna se multiplicasse, mesmo com as graves crises que quase nocautearam a economia dos Estados Unidos no início do século 20, culminando com o crash da Bolsa em 1929 — e a crônica daquele período é um dos pontos altos da obra.

O pouco sociável Benjamin decidiu se casar mais por uma necessidade social da época do que por qualquer outra motivação. O casamento com Helen Brevoort, jovem culta e filha única de uma família com sobrenome e sem dinheiro, foi arranjado e de interesse para ambas as partes. Helen também possuía aguçado tino para as finanças, mas direcionou esse talento na gestão dos recursos para a filantropia e o mecenato, providos fartamente e de bom grado pelo marido magnata. O casal teve assim uma ótima convivência, só abalada quando Helen começou a apresentar sintomas da mesma doença mental que afastou seu pai da família. A parte final da narrativa é dedicada à enfermidade de Helen.

Harold Vanner tem um estilo elegante que, em certa medida, lembra o de Borges. Ele começa pela saga familiar, discorre sobre a aridez dos meandros do mercado de capitais e finalmente chega ao pragmatismo de um casamento de conveniência e bem-sucedido, tudo embalado no mesmo discurso de sofisticação algo anacrônica que envolve o leitor desde o primeiro até o último parágrafo, levando-o a esquecer de que se trata de uma obra de ficção dentro de uma outra maior e lastimar seu final quando o livro está ainda em seu primeiro terço.

Contraponto
Minha vida, assinada por Andrew Bevel, vem na sequência e se contrapõe vivamente a Ligações, tanto pelo conteúdo quanto pela forma. Nela o autor, usando a primeira pessoa, apresenta uma narrativa irregular construída à maneira de um relato autobiográfico, ora com os capítulos completos, ora com esboços e anotações para aquilo que, presume-se, será depois desenvolvido. Há coincidências importantes entre as histórias de Bevel e de Rask, e o fato de os dois terem sido grandes financistas em Nova York na primeira metade do século 20 nos leva rapidamente a deduzir o que elas significam. (Nesse ponto, o leitor é compelido a interromper a leitura e correr ao Google para pesquisar sobre Andrew Bevel. O resenhista lhe poupa o trabalho e informa aqui que tal figura nunca existiu fora das páginas de Confiança. Talvez os dois personagens possam ser vistos como uma compilação de vários outros, porque, como se sabe, não existe ficção pura, algum lastro na realidade ela sempre terá.)

Na terceira narrativa, Memórias, relembradas, assinada por Ida Partenza, a autora visita a Residência Bevel em Nova York, transformada em museu após a morte de seu proprietário, e recorda o tempo em que trabalhou para ele. Qual era sua função não se vai aqui revelar, basta dizer que nela reside o conflito central do romance. Partenza, depois do trabalho para Bevel, tornou-se escritora. Seu discurso soa diferente daquele de Harold Vanner, num tom um pouco mais contemporâneo talvez, mas com o mesmo refinamento estilístico. Duas linhas temporais correm em paralelo nessa narrativa: uma, no tempo presente, encontra Partenza de volta à mansão-museu; outra, mais substanciosa, é dedicada a suas memórias, que começam em 1938. Depois da bela seção inicial, quebrada abruptamente pela secura algo esquemática da autobiografia de Bevel, é um alento encontrar de novo alguém que sabe contar uma história.

Os protagonistas da terceira parte são a própria autora, Bevel e Mildred, a esposa de Andrew, que já não vivia na época em que Partenza trabalhou para ele. Aqui temos outro belo exercício de metaficção que tem origem na óbvia dessintonia existente entre o retrato da amada esposa que Bevel quer eternizar e a pessoa que Mildred era de fato, e se multiplica como num jogo de espelhos que faz refletir uma imagem e seu avesso num movimento tendente ao infinito. De novo aqui a lembrança de Borges e outro de seus fetiches literários.

Diário
Quando Partenza volta à mansão, encontra ali a peça que faltava: o diário de Mildred com o registro de seus últimos dias e que, sob o excêntrico título de Futuros, compõe a quarta e derradeira seção do romance. Mildred não tinha pretensões literárias nem imaginou que seu diário pudesse um dia ser publicado. A consequência disso é outra narrativa irregular feita por alguém em luta constante para manter a lucidez contra os efeitos da morfina. Sua função no romance é mais ilustrativa de algo que havia sido antes sugerido do que propriamente a de um desfecho que contenha alguma novidade. Nem seria necessário pois, ao apontar de forma literal para o futuro, o diário de Mildred tem o condão de remeter paradoxalmente ao romance de Vanner, como se ela tivesse previsto tudo o que viria a acontecer depois de sua morte e fechando assim um círculo.

Para além da intrincada engenharia literária, Hernan Diaz traz em Confiança, a partir de um viés originalíssimo, duas tristes realidades (com o perdão do trocadilho) dos dias atuais: a prática do cancelamento de artistas e a reescrita de obras literárias para mudar nelas o que possa agredir a sensibilidade do público leitor. A bem da verdade, essas práticas têm em sua genealogia a depuração de páginas da História e o retoque de fotografias para que nelas sumissem antigos heróis que se tornavam desafetos de regimes autocráticos. Até mesmo a verdade entra no rol dos conceitos relativos, mas sobre isso Borges já filosofava e seu conterrâneo reverbera agora no novo Pulitzer.

O mais sublime, entretanto, vem daquele ensinamento do Nobel Isaac Bashevis Singer que este resenhista não cansa nunca de referir: “a literatura genuína informa enquanto entretém”. Essas discussões do momento estão todas ali, ainda que não de forma explícita. E, assim como Mildred Bevel chamou de Futuros o relato de seus derradeiros dias, Confiança mostra que um universo de solidez pode se esfacelar a qualquer momento ao sabor de uma singela nova perspectiva.

Confiança
Hernan Diaz
Trad.: Marcello Lino
Intrínseca
416 págs.
Hernan Diaz
Nasceu em Buenos Aires (Argentina), em 1973, e desde 1999 mora em Nova York. É autor de dois romances, traduzidos para mais de 20 idiomas: In the distance (2017), ainda inédito no Brasil e finalista do Pulitzer em 2018, e Confiança (2022), ganhador do Pulitzer de Ficção neste ano. Publicou também o livro de não-ficção Borges, between History and Eternity (2012).
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

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