A reputação de um romance como Os luminares, de Eleanor Catton, o precede. Mesmo para o leitor que o descobriu na prateleira da livraria: a capa informa que o livro foi vencedor do Man Booker Prize 2013, enquanto a orelha aponta que a autora foi a pessoa mais jovem a ganhar o prêmio (aos 28 anos, idade recém-alcançada por este resenhista) e que sua obra foi a mais longa a ser contemplada.
Além disso, a edição brasileira do romance foi lançada pela Biblioteca Azul a tempo de ser autografada em Paraty, durante a participação da escritora na Flip. O discurso impecável de Catton certamente levou muitos leitores a se interessarem pelas quase 900 páginas desse calhamaço de surpreendente leveza. O maior interesse do público se refletiu em um maior número de críticas — entre elas, uma particularmente infeliz, que dissertava sobre como a obra seria fora de moda e perguntava quem teria, atualmente, acompanhar uma história por tantas páginas.
Mas isso que denominei “reputação” não passa de conversa fiada para quem já se aventurou por Os luminares. Mudando de contexto uma citação da Nota ao leitor no início do romance, a obra talvez “possa ser chamada de pisciana em sua qualidade — emblemática, de fato, como as pessoas nascidas durante a Era de Peixes, uma era de espelhos, tenacidade, instinto, fraternidade e coisas ocultas. Essa noção nos satisfaz. Ela afirma ainda nossa profunda crença na notória influência exercida por esse céu infinito”.
O destaque dado ao “céu infinito”, que se descola do parágrafo que o precede e se alinha à direita, não se dá apenas nessa nota ou no título do livro. O romance é estruturado em doze partes, assim como doze são os signos zodiacais que regem as vidas do mesmo número de personagens que, mais próximos do leitor, interferem na percepção deste acerca da série de acontecimentos que perturbam a rotina do povoado de Hokitica em 1866, próximo às regiões de descoberta e extração de ouro. “As posições estelares e planetárias mencionadas neste livro foram astronomicamente determinadas”, avisa a autora: o céu sobre a Nova Zelândia naquele ano foi estudado de forma a ter sua influência representada nos personagens criados por Catton. A curiosidade do leitor que desconhece as implicações de cunho astrológico é aguçada no decorrer da leitura — quais nuances estaria perdendo?
Walter Moody não era supersticioso, ainda que se divertisse com as superstições das outras pessoas, e não era facilmente iludido pelas impressões, embora tomasse bastante cuidado ao formar as suas próprias.
É com Moody adentrando no salão de fumantes do Crown Hotel que o leitor mergulha na complexa trama tecida pela escritora. Como único estranho no recinto, a atenção dos demais homens é voltada — ainda que disfarçadamente — para ele enquanto Thomas Balfour conversa com ele para conhecê-lo melhor. A rememoração dos eventos que antecederam o momento em que passou a ser interrogado é acompanhada pelo leitor por algumas páginas até que ele volta “ao presente com uma sacudidela” e percebe que seu interlocutor “ainda estava olhando para ele, com uma expressão de expectativa intrigada no rosto”.
A cena era como um mundo minúsculo, refletiu Moody, dono de dimensões próprias. Uma quantidade qualquer de tempo podia passar quando sua mente por lá perambulava. Havia este mundo maior, que avançava no tempo e pulava espaços, e aquele mundo imóvel de desconforto e terror; eles cabiam um dentro do outro, uma esfera dentro de outra esfera. Que estranho, Balfour a observá-lo assim; o tempo real devia estar passando — revolvendo em volta dele, ao mesmo tempo…
O leitor de vez em quando é lembrado de que, na origem daquela narrativa, há alguém — seja em pensamento, como no caso citado, seja explicitamente, como se dá a seguir, com Balfour pondo o estranho a par das notícias que causaram burburinho pelo povoado: um assassinato, um desaparecimento, a descoberta de uma fortuna. Por vezes somos levados a esquecer de que é ele que conta a história; outras narrativas detalhadas se costuram à principal, afluentes dela, por tempo suficiente para o esquecimento, até que outro dos doze homens no salão interrompa Balfour e dê seguimento à narração do que os intriga.
Foi nesse ponto que o papel de Balfour como narrador foi usurpado — uma mudança marcada, no que tangia ao agente portuário, pelo acender de um novo cigarro, o encher de uma nova taça e um animado “Agora, corrijam-me se estiver errado, rapazes!”.
As descrições de Catton, em um estilo que muito se assemelha ao dos romances vitorianos, ajudam-nos a conhecer os personagens tanto física quanto psicologicamente de modo a podermos apreciar a complexidade interna deles, quando fazem algo inesperado. Entendemos até seus mínimos tiques.
Ele sentiu apenas alívio. Uma ordem invisível havia sido restaurada: o mesmo tipo de ordem que garantia que seu ovo quente estaria pronto todas as manhãs e que seus pratos seriam lavados.
Parte de mim lamenta que não haja mais personagens femininas no romance. A falta, porém, não deixa de ser compreensível: tanto pelo cenário escolhido — em plena corrida pelo ouro — quanto pela falta de documentação sobre a vida das mulheres em tal época naquele lugar — algo que Virginia Woolf questiona em Um teto todo seu.
Ele tinha uma queda por notícias fúteis, e ficou surpreso ao ver que a “dançarina mais atraente” da cidade também divulgava seus serviços como a “parteira mais discreta” da cidade.
Mas é no embate entre os diferentes tipos criados pela autora que podemos ver “tenacidade, instinto, fraternidade e coisas ocultas”, termos que reutilizei para descrever a obra. Assim como os astros se relacionam no céu infinito e os acontecimentos na trama, as linhas dos personagens se cruzam de modo a formarem um tecido primoroso — e vivo.
É sempre um momento nitidamente particular aquele em que um político percebe pela primeira vez o sujeito à sua frente como um homem — talvez não como um igual, mas pelo menos como um ser, irredutível, repleto de fragilidades, arrebatamentos, com um passado real e um futuro incerto. Alistair Lauderback sentiu a aridez desse momento e se envergonhou. Ele viu que Balfour havia oferecido sua amizade e que ele tinha aceitado apenas auxílio; que Balfour havia oferecido gentileza e que ele tinha aceitado apenas seu benefício prático.
Passagens como essa são uma constante no romance. Creio firmemente que, se o conhecimento da desenvoltura da autora fizesse parte da reputação da obra, ninguém cogitaria perguntar se o leitor de hoje teria tempo para calhamaços.