Sob o atento olhar das mulheres

Maria José Silveira e sua legião de mulheres percorrem a história do Brasil
Maria José Silveira, autora de “A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas”
01/08/2002

As cartas já estão amareladas pelo tempo. Moraram durante anos dentro de uma caixinha de vime, escondidas no armário do maestro. Ficaram esquecidas atrás dos cobertores e de uma montanha de partituras. Tão velhinhas, ficaram lá, sem ordem nenhuma, esperando que alguém as lesse.

O maestro já havia lido uma dezena de vezes, na juventude. Nada melhor para um piá do que descobrir os segredos daquela tia tão querida. A alemãzinha Helena, delicada em seu corpinho roliço que tanto agradava aos olhos do curitibano Zeno. Ele trabalhava em jornal. Depois, foi agente dos Correios. Por isso tantas cartas — e as tantas outras que se perderam, que pena!

Várias vezes, Guilherme, o sobrinho de Helena, quis me contar sobre a vida da tia querida. Mas, sempre sem tempo suficiente, ou com tantas pessoas ao lado nas festas de aniversário, ficava difícil. Ano passado, prometeu que me daria as cartas escritas por Zeno a Helena. E me explicaria qual foi a história de amor desses dois. Uma em Curitiba, outro no Rio de Janeiro, São Paulo, Maranhão, Bahia, Egito… Não deu tempo. Guilherme partiu. Foi encontrar sua mãe — a alva Guilhermina Clara, que tocava banjo como ninguém, nos idos da década de 20 —, a irmã — Tita, maior jogadora de pontinho do sul do mundo —, e a tia Helena.

Deixou as cartas na caixa de vime. Laço vermelho para fechar. Lá atrás dos cobertores, que o frio já vinha chegando. Achei assim, sem querer, quando fui arrumar as roupas do maestro. Seria bom doá-las para uma instituição, pensava antes de colocar as mãos sobre a caixa. Aquela caixa que continha segredos que fizeram parte de minha família.

(Quem acompanha o Rascunho com uma certa regularidade já conhece bem minha família. Meus textos sempre citam as pessoas que fazem parte da minha história. Gosto de escutar o barulhinho das teclas do computador enquanto forço minha memória para lembrar das histórias que ouvia nos cafés da tarde, na casa da minha avó Tita. Ou das tardes que passava ao redor da mesa da casa da outra avó, a Romilda, esperando mais uma vez as histórias engraçadas deos meus tios. Já contei dos meus pais, dos meus avós, dos meus bisavós. Se pudesse e tivesse algum talento, escreveria mais, muito mais. Porque família, bem sabem os que me conhecem além das letras do papel jornal, é tudo em minha vida. Conto, hoje, a história de Helena e Zeno. Família que não conheci. Só ouvi falar. E li, nas cartas amareladas que meu tio-avô escondeu no armário.)

Helena morava na fria e cinzenta Corityba. Zeno não tinha parada. Morou em Corityba, onde conheceu Helena, mas viveu ainda em São Paulo e Rio de Janeiro. Sempre em busca de um clima mais quente para aplacar a bronquite, passou pela Bahia e pelo Maranhão. Viajou o mundo. Onde parava, uma carta. A paixão era grande. Mas Helena e Zeno nunca se casaram. Mas tiveram, mesmo assim, quatro filhos. Todos morreram. A gripe, maldição nos idos da década de 20 — especialmente em uma terra chuvarosa, cinza e gelada —, levou todos muito cedo.

A dor do pai ausente é visível nas palavras entristecidas, na letra trêmula, na falta de assunto. Na apatia das últimas cartinhas. Nada mais dos comentários sobre as aparências (“Cortei o bigode, não se assuste com o retrato. Fiquei ainda mais feio do que já era. Mas espero que você esteja bem. Gorda, porque não gosto de mulheres feias e magras, bem sabes”), sobre as cidades por onde passou (“Aqui (Maranhão), o povo é muito humilde. Andam por aí, sem camisa e sem sapatos. Há muita gente feia e magra”), sobre a situação política (“Parece que o Brasil vai declarar guerra à Alemanha. Por isso, fique quieta. Não xingue nenhum brasileiro.”), nenhum conselho de moda (“A moda, aqui no Rio de Janeiro, é usar saias longas. Ninguém mais usa saias curtas. Um ou dois palmos acima do tornozelo. Parece-me que aquela sua saia preta de tecido fino está bem.”). Só a dor da perda.

Helena e Zeno foram separados por circunstâncias que não consegui descobrir. Só sei que ela, talvez cansada de esperar pela volta do amado, deixou-se seduzir por um alemãozinho que vivia por perto. Casou-se com Adolpho. Homem de bem, muito elegante e honesto. Tenho foto dos dois em um porta-retratos que trouxe também da casa do meu tio-avô. Essa que olho enquanto termino de ler o romance A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas, de Maria José Silveira.

Como é interessante essa história de contar a todos quais são suas origens! Não que ela (Maria José) tenha escrito sobre sua família. De verdade verdadeira. Mas, de qualquer forma, alguma coisa de verdadinha deve haver no romance. Historiadora que é, a escritora faz um passeio pela história do Brasil, do descobrimento aos dias de hoje. Sempre contando a vida das mulheres da família. O que não torna — digo já, antes que alguém pergunte — a narrativa feminina demais. Ou feminista. Ou o que quer que queiram rotular como escrita de mulheres para mulheres com mulheres. As moças são apenas pano de fundo para os desdobramentos da narrativa.

É um livro fácil de ser lido. São 20 mulheres. Quase todas mortas prematuramente, mas sempre a tempo de ter, pelo menos, um filho. E sempre apenas uma filha, a que dá seqüência a toda a história. Começa com Inaiá, uma indiazinha tupinambá, no dia do descobrimento. Conta de como a moça — que não era bonita como a Iracema de José de Alencar, aquela que tinha os lábios de mel e os cabelos da cor da asa da graúna — apaixonou-se pelo português Fernão, o Jovem. Riam muito os dois. Ela engravidou, então. Teve uma filha, a quem chamou Teberetê. Não tiveram tempo de brincar com a menina, no entanto. Foram mortos por uma tribo de guerreiros tupinambás.

Teberetê foi levada para a tribo que assassinou seus pais. Cresceu achando que era uma tupinambá, para a tristeza do norueguês Jean-Maurice. Teberetê, como mandava a tradição de sua tribo postiça, fez de um tudo para engordar o coitado. Ele seria, afinal, um bom prato para os tupinambás famintos. A indiazinha deu de comer ao moçoilo, que só se deu conta de que seria o jantar, na hora em que a fogueira já estava queimando. Mesmo grávida de uma filha do norueguês, não deixou de apreciar sua carne branquinha e gorda. Gostou tanto do sabor do moço, que não deixou escapar nem o ossinho do nariz dele.

Teve uma filha, é claro. Sahy (água dos olhos, lágrima) decifrava sonhos. Teve uma filha com Vicente Arcón, que ficou com ela porque se parecia com a esposa morta. A menina chamou-se Felipa.

A pobre mameluca foi levada para uma fazenda, por um comprador de escravos. Lá, apaixonou-se por Mb’ta, um negro da Guiné. Amaram-se e tiveram uma filha, Maria Mb’ta, que ficou conhecida como Maria Cafuza, a primeira mulher bonita dessa família. A bela viu os pais morrerem, depois de capturados em uma tentativa de fuga. Viveu, anos a fio, na casa do homem que matou seus pais. Até matá-lo. Casou-se com um de seus capatazes, Manu Taiaôba. Teve uma filha: Maria Taiaôba, que fez questão de aprender a ler e escrever. Casou-se com Duarte Antônio de Oliveira e foi mãe de Belmira. Que se casou com o holandês Wilhem Wilegraf, com quem teve Guilhermina. Que se casou com Bento Vasco e gerou Ana de Pádua. Mulher de José Garcia e Silva e mãe de Clara Joaquina. Na linhagem feminina, vieram ainda Jacira Antônia, mãe de Maria Bárbara, que foi mãe de Damiana, que gerou Açucena Brasília (também conhecida como Antônia Carlota), que foi mãe de Diana América, que teve Diva Felícia, que deu à luz Ana Eulália, que foi mãe de Rosa Alfonsina (ainda viva), que gerou Lígia, que é a mãe de Maria Flor, que está grávida e não sabe se será mãe de uma menina ou de um menino.

O livro fica mais interessante a cada nova geração. Até porque se quer saber o que acontecerá com a família. Que começou pobrinha, teve bons resultados com a cana-de-açúcar, melhorou ainda mais na passagem por Minas Gerais, onde abundava o ouro… Logo na introdução do livro, Maria José alerta ao leitor: “O assunto é delicado, a família é complicada, e nem tudo é beleza nessa história. […] Lembrem-se também, se for o caso, de que foram vocês que me pediram, dessa vez, para contar a história das mulheres. […] Já lhes digo de antemão que a vida deles é tão interessante quanto à das mulheres, e se não entro mais na seara deles é só para atender ao desejo de vocês”.

Cada uma dessas mulheres é a heroína de um capítulo. Cada uma delas foi vilã em algum momento. E todas elas contam a história dessa misturança de raças, de religiões e de talentos que originou o Brasil. Felizmente, nenhuma delas foi protagonista de algum movimento definitivo na história do país. Não foram índias catequizadas por Padre Anchieta, não trabalhavam de camareiras no palácio de Carlota Joaquina, não se deitaram com Dom Pedro II, não estavam entre os construtores de Brasília. Mas participaram de todos os momentos importantes da vida social e política do Brasil. Eram personagens sem nome, sem data, sem importância para aqueles que estão nos livros de história. (Me lembro agora das cenas de abertura do filme O fabuloso destino de Amelie Poulain. Encaixa-se nesse livro. Algo como: no dia 22 de abril de 1500, enquanto os portugueses desciam das naus, ouvia-se o primeiro choro de Inaiá. No mesmo momento, o rei de Portugal bocejava. E uma missa era rezada na igrejinha de uma vila espanhola). Assim, como qualquer outra linhagem familiar. Como a minha própria. “Aos 3 dias de março de 1919, Zeno escreve para Helena que os dias, no Rio de Janeiro, são ensolarados, porém com pouco calor. O céu, limpo. Diz ainda que mudou-se para o English Hotel, que é mais caro, mas que pelo menos pode-se comer. Conta que pulou carnaval com Oscar, vestido de pierrot. Pede para que Helena não trabalhe muito e manda beijos e abraços.”

A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas
Maria José Silveira
Globo
367 págs.
Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho