No final do ano li a sinopse de Sob a redoma, de Stephen King. Era algo mais ou menos assim: “Num dia qualquer, uma redoma invisível isola uma pequena cidade do resto do mundo”. Achei que esta idéia poderia se transformar numa ótima metáfora, servindo para falar de ecologia, indivíduo versus coletivo, etc… Além disso, eu nunca havia lido nada de Stephen King. Juntei o agradável ao útil e fui ver o que havia Sob a redoma.
Pois bem, há livros que falam sobre pequenos fatos (uma mulher que se depara com uma barata, por exemplo) e outros que falam sobre grandes acontecimentos (como gigantescas baratas marcianas invadindo a Terra). O livro de King pertence ao segundo grupo.
Este tipo de ponto de partida é comum na chamada literatura comercial e nos filmes blockbuster. Mas não é uma exclusividade das obras voltadas para o mercado. Começar com um grande e inexplicável evento é algo que já foi usado, por exemplo, por José Saramago. É só lembrar de livros como Ensaio sobre a cegueira e Jangada de pedra. No primeiro, toda a humanidade (menos uma mulher) perde a visão. No segundo, a península ibérica se separa da Europa e fica vagando pelo oceano.
Pescando o leitor
As primeiras páginas do livro de King, quando se constata a existência da redoma, são bem interessantes. Ele abre várias frentes narrativas, contando causos que, por enquanto, nada têm a ver entre si. Há um teco-teco que se espatifa e automóveis que batem na redoma, familiares são separados, cada um de um lado da redoma, e algumas pessoas são separadas de si mesmas, ou seja, cortadas ao meio.
Neste início temos a apresentação dos personagens. E não é uma apresentação lenta, sutil. De cara já sabemos quem é bom e quem é mau. E também quem é muito mau. No caso, Big Jim. Trata-se de um vilão típico. Ele é imensamente gordo, é vereador, dirige um Hammer (aquele carro gigantesco que ocupa uma rua inteira), é grosseiro, sem meios tons morais e sem nenhuma justificativa para suas maldades que não seja a sede de poder. Isso é uma pena. Os vilões que têm algum motivo justo para serem maus são mais interessantes. E até na literatura infantil eles já aparecem.
Os mocinhos também são um tanto clichê. O principal, Dale Barbara, é um veterano da Guerra do Iraque que, desencantado da vida, trabalha numa lanchonete da cidade. Julia Shumway é uma heróica jornalista e Joe Espantalho faz as vezes do já tradicional papel de garoto-nerd-salvador-da-pátria. Ou seja, em termos de personagens, nada muito novo.
Quanto à estrutura, King escolheu dividir seu livro em capítulos curtos, raramente com mais de quatro páginas. Ele salta de um personagem para outro, mesmo recurso usado nos livros da coleção Guerra dos tronos e em Código da Vinci, com a diferença de que neste último há apenas três linhas narrativas, e nos de George R. R. Martin e no de Stephen King há pelo menos o dobro.
Estas várias pontas soltas servem como um eficiente anzol para o leitor. Às vezes você não é atraído por uma das linhas narrativas, mas quer passar rápido por ela para ver como se desenrola aquele outro fiapo de história pelo qual você realmente se interessou.
Como julgar um livro
Algo curioso, que neste livro é levado às últimas conseqüências, é que só a ação fala. Não temos narrador ou personagens analisando, filosofando ou simplesmente pensando sobre um fato. Há apenas os fatos. Conhecemos os personagens pelo que eles fazem, não pelo que pensam. Nisso, o livro se parece muito com um roteiro (aliás, ele virará minissérie em breve nos EUA, pela CBS), em que raras vezes um personagem tem a oportunidade de raciocinar. Quando muito, um personagem conversa com o outro e aí sabemos o que ele acha sobre algo ou alguém.
Em relação à metáfora que eu esperava, ela acaba não se concretizando. Há, talvez, uma certa referência à ecologia, à idéia de que todos estejamos sob a mesma redoma, a Terra. Mas isto não é o mais importante. A redoma é mais uma desculpa para a ação constante. Tanto que ela acaba esquecida por um tempo e o livro transforma-se num romance policial, com crimes sendo cometidos pelos bandidos e mocinhos tentando pegar os culpados.
Para destruir de vez a possibilidade de a redoma ser uma metáfora, há uma explicação científica para ela. Uma explicação pouco crível e desnecessária. Mal comparando, é como se, em A metamorfose, Kafka explicasse que Gregor Samsa foi mordido por uma barata radioativa, e por isso acordou transformado em inseto.
Esta ação excessiva e a falta de um sentido submerso fez com que eu tivesse um tanto de preguiça para ler as mais de setecentas páginas do livro. Gosto de ação, realmente não tenho nada contra. Mas é necessário temperar com um tanto de raciocínio, senão fica cansativo. Mas este é o meu gosto. E talvez esteja aí o grande erro desta minha rabugenta resenha. O livro não foi escrito para mim. Foi escrito para uma turma mais jovem, que não quer saber de muitas sutilezas psicológicas.
Tive a prova disso quando dei uma busca no Youtube para ver resenhas sobre o romance (há milhares de resenhas literárias ali, a grande maioria feita por adolescentes) e só encontrei elogios. Ou seja, o livro agrada muito o seu público alvo.
E eis aqui uma dúvida que tenho: Quando fazemos uma resenha, o mais honesto é analisar a obra pensando em para quem ela foi feita ou é mais sincero contar nossas impressões de leitura? Devemos julgar um livro pelo que ele nos causa ou pelo tanto que consegue daquilo a que se propõe?
Quando faço um romance, confesso que penso apenas em mim. Escrevo o que eu gostaria de ler e torço para que o resto da humanidade goste. Mas quando lemos a obra de outro e escrevemos para outros sobre esta obra, como devemos pensar? Sob a redoma ou não?