Julian Barnes — ao lado de Ian McEwan, Christopher Hitchens e Martin Amis — faz parte dos últimos grandes expoentes da literatura inglesa contemporânea. Umberto Eco, poucos meses antes de morrer, disse que Barnes é um “escritor de escritores” — a mesma pecha que gente do calibre de Enrique Vila-Matas e Macedônio Fernández carrega.
Com uma prosa requintada e bem arranjada, Barnes navega entre gêneros e compõe um interessante quebra-cabeça narrativo. Seus textos cheios de humor e nuances foram comparados — por Marcelo Rezende, na Folha de S. Paulo, em 1994 — aos esquemas estilísticos criados pelo autor de Ulysses. “Eu nunca fui comparado com James Joyce antes, mas se você pensa assim eu é que não vou reclamar. Mas é claro que o humor dele era mais irlandês. E eu sou mais inglês”, comentou jocosamente à época.
O ruído do tempo, sua obra de ficção mais recente, se distancia com precisão de qualquer estereótipo joyceano ao retratar a vida de Dmitri Shostakovich (1906–1975), compositor russo amado e, posteriormente considerado persona non grata, pelo governo da União Soviética. O sucesso de sua Primeira Sinfonia, composta aos 19 anos, fez com que fosse alçado ao posto de herói nacional, sendo celebrado como gênio e exemplo para o povo, para depois ser perseguido — sistêmica e metodicamente — pelo regime. Ainda que o livro se alicerce imensamente na vida de Shostakovich, Barnes confessa que interpretou muito do que leu em biografias e outras obras sobre o compositor. Tamanha ousadia — reunir realidade e imaginação em uma mesma página — cria um cenário de perfeição linguística, narrativa e, claro, plástica.
Julian Barnes é um artesão da palavra. Em Altos voos e quedas livres, consegue misturar balonismo e luto, fazendo do livro uma homenagem à esposa Pat, morta pouco tempo antes. Como André Gorz, em Carta a D., Barnes celebra os anos junto à mulher amada, mas, ao contrário do colega sociólogo, prefere continuar vivo. (Gorz e sua mulher, Dorine, cometeram suicídio em 2007, após ela viver por anos com uma doença sem cura.) Em O ruído do tempo a História — assim mesmo, com “h” maiúsculo — é somente um amparo para toda a construção literária. “Shostakovich foi um múltiplo narrador de sua própria vida, algumas histórias têm múltiplas versões, modificadas e ‘melhoradas’ ao longo dos anos”, explica na nota que encerra o livro. A chave para entender o percurso traçado pelo escritor está nessa frase que, apesar de muito singela e escondida, guarda um segredo fundamental: o poder das relações.
Experiente e talentoso, Barnes sabe como poucos a maneira correta de conduzir o leitor, pegando-o pela mão para poder levá-lo ao altar sagrado em busca do sacrifício.
Sedução literária
Experiente e talentoso, Barnes sabe como poucos a maneira correta de conduzir o leitor, pegando-o pela mão para poder levá-lo ao altar sagrado em busca do sacrifício. Se McEwan manipula quem o lê, o autor de O papagaio de Flaubert é sedutor à moda antiga. De certa maneira, essa elegância, regada aos galanteios e floreios, faz jus ao que o escritor acreditar ser o mais memorável: “quando um casal, após os autógrafos, diz: ‘nós nos conhecemos por sua causa’”.
Por exemplo, O sentido de um fim, com o qual venceu o Booker Prize, (de)mo(n)stra o poderio de sua percepção frente às interações humanas. Dotado de poderosa sutileza, cria um cenário apocalíptico para um homem que, na velhice, deseja retornar à juventude. Barnes é capaz de extrair a essência daquilo que vê e transcrever com sensibilidade — sem apelar à pieguice.
Mesmo que tenha os holofotes em um único homem, O ruído do tempo é também uma reflexão sobre a arte e uma espiada na influência política sobre as coisas prosaicas. O dia a dia de Shostakovich é o ponto de partida para uma análise mais intensa a respeito das relações promíscuas que envolvem os interesses do establishment. Enquanto a arte serve para manter o status quo, não causa tremores ou dúvidas, não há por que mexer as peças do tabuleiro. As linhas tênues que separam a vanguarda e o mainstream estão em outro livro de Barnes publicado há pouco no Brasil, Mantendo um olho aberto.
Ainda que não exista uma conexão direta entre as obras, é quase impossível não notar o olhar atento do escritor para o fazer artístico. Considerando que sua infância, como explica na introdução deste último livro, foi praticamente vazia de arte, chega a ser prodigioso que Barnes viva — literalmente — dela. “[A arte] não só captura e transmite a excitação, o entusiasmo da vida. Às vezes, ela faz mais do que isso: ela é esse entusiasmo”, sentencia com certo prazer.
Por meio da narrativa, Barnes esmiúça aquilo que passou ao largo dos historiadores. Muito mais importante que a precisão factual, sua literatura se prende à estética da narrativa, ao mito que enleia seu personagem. Melhor que uma verdade insípida, é uma cheia de sabor. E Shostakovich é o ingrediente certo dessa receita. Os percursos de amor e ódio entre o compositor e Stálin — e as histórias quase borgeanas que surgem desse dualismo — fornecem um substrato interessante e fundamental. Segundo Barnes, Schosta, como era chamado na América, era interrogado pontualmente a cada 12 anos. 1936. 1948. 1960. Quando nada aconteceu em 1972, sentiu que algo estranho pairava no ar. A coação rítmica e sincronizada havia chegado ao fim, quebrando uma corrente que lhe dava certa segurança — já que sabia que não seria assassinado. A partir daquele “silêncio”, tudo estava suspenso.
Vale das trevas
Ironicamente, e de propósito, Barnes conduz seu protagonista pelo silêncio — como se a música fosse apenas a esfera visível de Shostakovich. Com alguma certeza, mais hipotética que empírica, a ausência de som deve ser o vale das trevas para qualquer pessoa ligada à música. Em outros momentos, o ruído é a fonte de um humor negro e reluzente: “A Primeira Sinfonia tinha feito todos os cachorros da vizinhança começarem a latir” ou “Ele próprio sofria de um medo não capitalista a cada decolagem e aterrissagem”.
Essas nuances e oscilações fazem parte do cardápio de Barnes, que parece levar a cabo a lição deixada por Belchior: viver é melhor que sonhar. Shostakovich, diz o autor, é um “coelho aterrorizado” sob a mira da escopeta. Porém, o tiro nunca vem.
Sempre afeito às metáforas, em O ruído do tempo, Julian Barnes mergulha na realidade nua e crua de um personagem fascinante, tão fascinante que sua vida é mais interessante que a ficção — algo alcançado por Sylvia Plath e Oscar Wilde, por exemplo.
Em entrevista ao El País, em 2014, Barnes revelou que a metáfora é um artifício contra a falta de memória, entretanto, engana-se que a verossimilhança daquilo que se lembra e aquilo que realmente aconteceu seja seu maior objetivo. “Quando mais velho fico, menos me fio na memória. Não creio nela como uma representação da realidade. Quanto mais me equivoco, mais me dá obsessão. (…) Discuti muito isso com o meu irmão filósofo [Jonathan Barnes]”, comentou.
O ruído do tempo é uma ode às vicissitudes do tempo e do espaço e, também, um retrato interessante sobre um recorte político e social pouco prosaico. Barnes faz de seu livro uma espécie de memória recontada, interpretada e ressignificada.