Italo Calvino, um dos ícones da literatura universal da segunda metade do século 20, lançou As cidades invisíveis em 1972 — portanto há pouco mais de 35 anos, tempo que se costuma ter como insuficiente para elevar qualquer livro à condição de clássico. Contudo, ao imaginar os relatos que o viajante veneziano Marco Polo teria feito ao poderoso Kublai Khan sobre as cidades do vasto império que ele visitara a serviço do conquistador mongol, Calvino produziu uma pequena jóia que talvez seja hoje seu título mais conhecido e citado — também o mais imitado — pelos quatro cantos. Neste caso, “pequena” não é só força de expressão: em enxutas 150 páginas espalham-se várias mininarrativas, às vezes com menos de uma página, cada uma delas versando sobre uma cidade e todas costuradas por uma narrativa condutora fragmentada, esta em caracteres itálicos. “Se meu livro”, disse Calvino, “continua sendo para mim aquele em que penso haver dito mais coisas, será talvez porque tenha conseguido concentrar em um único símbolo todas as minhas reflexões, experiências e conjeturas”. No estilo sempre elegante e preciso do escritor italiano, As cidades invisíveis explora elementos do fantástico, flerta com a poesia e tem uma estrutura híbrida, onde cada relato pode ser lido tanto como um miniconto quanto como o capítulo de uma peça maior. A impressão que se tem é que Calvino jogou tudo em seu caldeirão de bruxo, mexeu muito bem e, usando ingredientes que costumam brigar quando se vêem juntos no mesmo espaço, compôs uma obra-prima.
Por certo As cidades invisíveis não é o único exemplo de ousadia bem-sucedida da história da literatura — aliás, a ousadia ali tem um refinamento que quase a faz passar despercebida — e é graças a subversões como essas que a arte caminha e leva seus frutos a cair muitas vezes bem mais longe do pé do que se poderia supor. Talvez por isso, logo no início de O livro dos nomes, de Maria Esther Maciel, as admiráveis cidades de Calvino venham instantaneamente à lembrança. Embora o mote seja outro e a mineira tenha explorado a simetria bem mais do que seu colega italiano, é inegável a semelhança formal entre as duas obras: O livro… compõe-se de 26 capítulos, cada qual dedicado a um nome próprio e dispostos em ordem alfabética, começando pela quase obviedade de um Antônio e terminando por uma emblemática Zenóbia, momento em que As cidades… é citado com tanta intimidade que Maria Esther sequer julgou necessário mencionar-lhe a autoria (pode-se especular sobre esse pequeno detalhe e encontrar para ele mais de uma justificativa plausível; a melhor, sem dúvida, é que talvez exista aí uma homenagem muito sutil mas inequívoca à fonte inspiradora). Cada capítulo abre com a apresentação do nome do personagem, em itálico, seguida de quatro relatos que o têm como protagonista, quase sempre menores do que uma página e que também podem ser lidos de forma avulsa, como minicontos. Os personagens, contudo, não são avulsos: existe a uni-los vínculos ora familiares, ora de ódio ou amizade — até um cão merece o seu capítulo —, para compor o que o texto anônimo da orelha descreve de maneira bastante apropriada como uma “tapeçaria de relações humanas que pode muito bem ser chamada de romance”.
Hibridez
Mas são muitas as analogias possíveis a partir da idéia originalíssima de O livro dos nomes — mosaico, quebra-cabeça, caleidoscópio são algumas outras também enumeradas na orelha —, e sem que para isso seja preciso apelar para qualquer tentativa, de antemão frustrada, de se fixar a obra em algum gênero preconcebido. Até porque, se a tratarmos como mera coletânea de contos (assim indica a ficha catalográfica), ficará evidente uma indesejada disparidade qualitativa entre eles: alguns estarão muito bem realizados, o que demonstra a familiaridade da autora com os preceitos do bom conto, enquanto outros pecariam justamente pela deficiência de alguns desses mesmos valores. É o caso da recorrência de finais carentes do fator surpresa, ou então da falta da estranheza característica do gênero. Se, contudo, a tomarmos por romance, como sugere a orelha, a obra surpreenderá pela agilidade da narrativa e pela construção peculiar, mas careceria então de aprofundar algumas de suas várias histórias, ou mesmo seus personagens, para que ganhasse densidade. Porém, exatamente como acontece em As cidades…, muito da graça de O livro… pode ser creditada à sua hibridez. E, se o que sobra de um lado pode não servir necessariamente para compensar o que falta de outro (a arte não se submete a essa lógica cartesiana), a originalidade da forma permite que as peças se encaixem para fazer todo o sentido.
O diálogo com As cidades… não termina aí. Ainda que tenham estilos distintos, tanto quanto Calvino, Maria Esther aposta na elegância do discurso, equilibrando um léxico contemporâneo e nada pomposo com uma eufonia só obtida por quem investe tempo no esmeril das palavras. O esforço resulta em naturalidade. Também como Calvino, a autora vai buscar na poesia inspiração para compor metáforas e outras figuras. Em O livro… elas beiram às vezes o exotismo, mas geram no mínimo belas frases de efeito: “você tem uma delicadeza tensa”, “nem todo ardil está isento de afeto”, “todas as águas, em certas horas, têm a cor dos afogados”, “para ela, as xícaras nunca se encaixam nos pires”, “um anjo pode forçar demais as pessoas à transparência”. Essa habilidade não impede que um clichê aflore aqui e ali, no mais das vezes disfarçado num belo invólucro: “nada começa que não acabe um dia”, “toda sensatez é medíocre”, “o feitiço tende a voltar para quem o pratica, como desgraça e castigo”, “eu o amo menos por admiração do que por hábito”, e por aí vai. Todas essas frases vêm na voz de algum dos muitos personagens, realçadas pela grafia em itálico que é a maneira escolhida para sinalizar o discurso direto — e que deixa o lugar-comum ainda mais visível.
Múltiplas facetas
À parte esses pequenos senões, Maria Esther move-se muito à vontade na complexa estrutura que idealizou. A mão firme da escritora permite ao leitor atravessar a multidão de personagens sem se perder pelo caminho. Ou melhor, a autora quer de certo modo que ele se perca, assim como sugerem os guias turísticos de algumas cidades onde as atrações estão em toda parte e um visitante, perdido, pode descobrir a maravilha daquilo que outro jamais viu. O livro… é assim uma obra que se presta a oferecer múltiplas facetas de acordo com a percepção de cada leitor. O jogo com a simbologia dos nomes é um bom exemplo disso: ora parece que o nome está de fato condicionando o destino do personagem, ora parece o contrário, que o destino do personagem desafia o fator condicionante de seu nome. O resultado, pela aqui já desdenhada lógica de Descartes, seria a anulação de uma premissa por outra de igual valor.
Na lógica nunca exata da arte, Maria Esther Maciel consegue então o mais difícil: um livro que não fica apenas numa boa idéia, como o caso de tantos outros, mas extrai o que ela pode render de melhor — e esses são raros.