Até mesmo os grandes podem errar. No livro Homens difíceis (Editora Aleph), de Brett Martin, conta-se que o momento de maior vexame para o canal de televisão a cabo HBO foi quando, em meados de 2007, alguém do quadro da diretoria (mais precisamente, Carolyn Strauss, então chefe de programação), todo feliz porque havia atingido os píncaros da glória com o sucesso de The Sopranos, resolveu desistir de dois produtos que, se feitos naquela emissora, a levaria aos umbrais da imortalidade: a realização da quarta e última temporada de Deadwood e a recusa da proposta de uma série criada por Matthew Weiner — o garoto prodígio descoberto por David Chase —, intitulada Mad men.
O cancelamento de Deadwood era uma traição para os fãs do seriado, mas era compreensível. Em primeiro lugar, era cara: ela se passava no Velho Oeste americano, portanto tinha de arcar com uma reconstituição de época nos cenários e nos figurinos em que nada podia ser feito sem esmero; em segundo, tinha um ritmo todo próprio, em que os acontecimentos da primeira temporada chegariam ao seu clímax somente no meio da segunda, além de uma peculiaridade que incomodava alguns temperamentos mais afoitos — como, por exemplo, no meio de uma cena ter um personagem que iniciava um monólogo shakespeariano, com linguagem shakespeariana, algo que nove a cada dez roteiristas falam para evitar como se fosse o diabo; e em terceiro lugar, o temperamento vulcânico e controlador de seu criador, David Milch, um sujeito que foi aluno de ninguém menos que o poeta sulista Robert Penn Warren (autor de Todos os homens do rei), obcecado por William Faulkner e que, ao contar a trajetória do canalha Al Swearengen (interpretado com um toque de gênio pelo inglês Ian McShane), mostra como alguém desprezível tem uma função importante na construção de qualquer sociedade, independentemente das suas boas ou más intenções.
Milch era alguém capaz de ficar deitado no chão, com dez roteiristas ao redor, e obrigá-los a transcrever cada nuance do seu pensamento enquanto ele bolava o arco dramático de cada episódio. Era também alguém sensível à linguagem que saía do coração de cada personagem seu e tinha a certeza de que a intenção primeira de qualquer contador de histórias era mostrar como uma alma podia escapar da danação onde se encontrava para descobrir alguma espécie de redenção, mesmo no pior de todos os mundos possíveis.
Nesta obsessão pelo controle e pelo perfeccionismo que levava os outros à loucura, Milch só teria um igual: Matthew Weiner. Mas não foi apenas nesse aspecto que os dois ficaram no mesmo pódio. Na mesma época em que a HBO decidiu que não produziria mais Deadwood, pelos motivos já apresentados acima, a emissora também determinou que não investiria em um roteiro de um piloto a respeito de um grupo de publicitários que viveu os loucos anos 1960 nos EUA, mais especificamente no coração da publicidade — Nova York, em plena avenida Madison. Os motivos foram os mesmos do cancelamento da série de Milch: muito caro, muito literário e a fama de Weiner, vinda desde a última temporada de The Sopranos, apesar do aval de David Chase, era o seu rigor à la Stanley Kubrick. Os anos se passaram e hoje sabemos o que aconteceu: nunca mais perdoaram a HBO por não ter mantido Deadwood e o canal AMC ficou com o roteiro de Weiner, transformando-a no carro chefe da emissora, com milhares de Emmys nas costas e milhões de espectadores pelo mundo afora.
A comparação de Weiner com Kubrick não é aleatória — e também não é um exagero colocá-lo lado a lado com Milch. Do cineasta de Laranja mecânica (1971), ele aprendeu que só tendo o controle absoluto dos meios técnicos é que poderia contar a história que sempre imaginou; para isso, não economizou em uma intensa pesquisa histórica, indo dos detalhes de roupas até as frutas que ficavam dispostas aparentemente ao acaso no cenário do estúdio; ou então, obrigava os seus roteiristas a entregarem o roteiro do episódio só depois da quarta versão — para depois modificá-lo completamente e mandar refazê-lo sem hesitar. De David Milch, Weiner também reconheceu que, para transformar uma série de televisão em uma verdadeira obra de arte, era necessário esquecer as regras cinematográficas que amarram os roteiristas e voltar para a fonte de tudo — a grande literatura que todos nós conhecemos.
Talento e ousadia
Mad men é o ápice do seu talento e da sua ousadia — além de ser uma confirmação do seu próprio recomeço como escritor. Não à toa que o tema principal da série é justamente a capacidade de as pessoas se reinventarem constantemente. Antes de ser o responsável pelas duas últimas temporadas de The Sopranos e de criar sua própria série, Matthew Weiner era mais um aspirante a escritor, tendo participado da equipe do sitcom Becker, estrelada por um decadente Ted Danson, e querendo ganhar algum dinheiro como roteirista apenas para pagar as contas. O piloto de Mad men foi a chance que deu a si mesmo para provar que ainda tinha algo a dizer. Era um projeto que cultivou seus sonhos, suas obsessões e, principalmente, seus medos.
Essa ambição desmedida é a chave para se entender o personagem principal da série — e o eixo pelo qual a temática da reinvenção terá suas múltiplas variações dramáticas. Estamos falando, é claro, do insaciável Don Draper, o obscuro objeto do desejo de dez a cada dez mulheres e de nove a cada doze homens, interpretado pelo igualmente desejado Jon Hamm, talvez o único ator hoje em dia que consegue o feito de fazer uma esposa ovular enquanto um casal assiste a um episódio da série. Ocorre que Draper não é Draper; ele é, na verdade, Dick Whitman, literalmente um filho de uma puta e de um bêbado e que, na Guerra da Coréia, graças a uma fatalidade de batalha, rouba a identidade de Draper e vai tentar uma nova vida em Nova York, a princípio como vendedor de chapéus e, depois, graças a um encontro com o publicitário grã-fino Roger Sterling, torna-se o diretor de criação da agência Sterling Cooper, uma das mais requisitadas na avenida Madison (daí o título Mad men, também um trocadilho com “homens loucos”).
Em torno de Draper, existem mais cinco personagens que gravitam ao redor da sua aura de desejo: além de Sterling, um bon vivant que vive de acordo com um estranho estoicismo, temos Peggy Olson, jovem inocente que aprende dolorosamente a sobreviver na selva do mercado da publicidade, amputando boa parte de sua vida emocional; há Pete Campbell, um arrivista de quinta categoria que faz o que todo o arrivista faz no ambiente de trabalho — as eternas intrigas e o eterno “rádio peão” que dão alegria aos empregados do baixo clero corporativo; a mesma coisa faz Joan Harris, ruiva voluptuosa, que não hesita em usar os seus atributos para conquistar sua posição de poder no escritório, ainda que mostre também ter um coração de ouro; e Betty Draper, esposa de Don, igualmente cobiçada por todos, ex-modelo adolescente que decidiu ser a típica dona de casa do final dos anos 1950 porque, bem, era o que aquela época permitia para uma mulher daquele tipo, com duas crianças para cuidar (a adorável Sally e o tímido Bobby) e um marido mulherengo.
Anos 1960
E por falar em época, os anos 1960 é outro personagem, que atua como pano de fundo de todos os episódios, ligando-os uns aos outros, e é o que dá chance a Weiner comentar sobre o momento em que a América deixou de ser a terra do mel da década de 1950, repleta de baby-boomers, para se tornar a terra dilacerada da luta pelos direitos civis, da contracultura beatnik e hippie, do assassinato de John e Robert Kennedy e da Guerra do Vietnã. Ao mesmo tempo, ele também fala sobre o nosso presente, igualmente dividido, seja nos EUA ou no Brasil, em que a publicidade rima com o desejo para criar a ilusão de que você não apenas vive duas vezes, mas várias — no caso, a vida vivida para si mesmo e a outra vivida nos seus sonhos.
Para dramatizar essa lacuna entre o que os personagens querem e o que eles podem fazer na realidade, Weiner recupera a mesma estética visual que aprendeu com David Chase em The Sopranos: usa e abusa do tempo lento, próximo do literário, em que as nuances da trama surgem nos detalhes ou em um diálogo aparentemente despretensioso, mas carregado de subtexto e insinuações — com a diferença de que, na série de Chase, a intenção era de que cada episódio fosse um filme de uma hora cada, enquanto agora tudo o que Weiner quer é que cada episódio tenha a densidade de um conto assinado por alguém como F. Scott Fitzgerald, Richard Yates e Ernest Hemingway, seus modelos maiores de dramaturgia.
Há um quarto nome, contudo, explicitado pelo próprio criador em uma entrevista dada ao New York Times, e que ecoa como um espectro em cada episódio de Mad men, tanto na temática como na técnica — ninguém menos que John Cheever, um dos maiores contistas norte-americanos do século 20. Cheever e Weiner usam, cada um a seu modo, uma forma muito específica de contar uma história e que já foi analisada por gente do calibre de um T. S. Eliot: o bom e velho correlato objetivo. Trata-se de uma exteriorização do que o personagem sente no seu íntimo, mas não consegue exprimir, ora porque lhe faltam as palavras, ora porque quer esconder a perturbação de si mesmo, e esta é refletida em algum objeto ou pessoa que participa do mundo real — revelando ao leitor que a sua vida interior precisa de uma renovação imediata, caso contrário toda sua existência ficará empacada para sempre.
Podemos ver o ápice de Cheever no uso dessa técnica ao lermos o conto Canção triste (Torch song). A trama é aparentemente simples: acompanhamos os sucessivos encontros entre Jack Lorey e (olhem a coincidência no nome) Joan Harris no decorrer dos anos. A princípio, parece que vamos ler uma história de amor entre esses dois personagens, mas nada disso acontece. Conforme o tempo mostra o progressivo envelhecimento de Lorey, o narrador em terceira pessoa observa que Joan se mantém jovem, sem uma única ruga, enquanto se envolve com homens que sempre estão a um passo de cair no abismo. Um dia, Lorey, divorciado e sem dinheiro, sozinho em um hotel e extremamente doente, recebe uma visita surpresa de Joan — e começa a perceber que o cuidado que ela lhe dá é muito diferente de uma mulher normal. Então intui, como se fosse uma iluminação (para ele e para o leitor que está lendo o conto naquele momento), que Joan não é uma qualquer; ela parece ser nada mais nada menos que a própria Morte, que sempre o acompanhou e que agora vem para agarrar sua alma. Jack decide subitamente que não entrará no jogo daquela mulher, expulsa-a do quarto e recomeça a sua vida.
Correlato objetivo
Weiner utilizará do mesmo procedimento em vários episódios de Mad men, chegando ao exagero de usá-lo como método na sétima e última temporada. Em The suitcase (A mala), por exemplo, Don Draper tem de criar uma campanha publicitária para as malas Samsonite, ao mesmo tempo em que sabe que a verdadeira esposa do homem de quem roubou a sua identidade — e com quem mantém um relacionamento repleto de tensão sexual —, Anna, está morrendo de câncer ósseo. Atormentado pelo fato de que a única pessoa que sabe do seu segredo partirá em breve, Draper se afoga na bebida e não consegue trabalhar no projeto, deixando tudo a encargo de Peggy Olson, que, por sua vez, também está em um turbilhão emocional ao ter um caso com Duck Phillips, um funcionário mais velho que a vê apenas como “mais uma puta”. Ambos abalados, Draper deita no colo de Peggy e tem um sonho com Anna, que se despede dele, usando a mesma mala Samsonite que eles têm de vender na campanha. Quando Don acorda, recebe um telefonema da sobrinha de Anna, que o avisa de que ela está morta.
Nos dois casos acima, tanto Weiner como Cheever usam o correlato objetivo para que o espectador e o leitor saibam o que se passa na alma de cada personagem. A sutileza está no fato de que Weiner aprendeu com Cheever que o uso do correlato objetivo só será bem sucedido se for calcado em ambiguidade e sugestão dramática. Em Canção triste, jamais saberemos se Joan era a Morte ou se Jack estava tendo uma alucinação; em The suitcase, também jamais saberemos se o sonho de Don foi a última conversa que teve com Anna Draper e se não foi por acaso o fato de ele ter de criar uma campanha publicitária justamente para a Samsonite, que simboliza a partida definitiva de sua falsa esposa.
Esse procedimento é eficaz porque, ao lidar com o tema maior da reinvenção, Matthew Weiner quer também mostrar aos espectadores que os seus personagens também podem amadurecer e, o mais importante, se transformarem em pessoas melhores. Neste aspecto, o uso de James Bond, criação imortal de Ian Fleming, como o modelo no qual Don Draper se espelha para continuar a ser um homem desejado por todas e todos, é exemplar. No episódio que fecha a quinta temporada, intitulado justamente The phantom (O fantasma), vemos Draper acompanhar sua nova esposa, Megan, com quem se casou logo depois de se divorciar de Betty (e que se arrumou muito bem ao se casar pela segunda vez com o político Henry Francis), no meio de uma gravação para um anúncio em que ela será a atriz principal. Ele olha para Megan e se despede, ao som de You only live twice, canção de Nancy Sinatra, e que ficou famosa por ser o tema de abertura da adaptação cinematográfica do livro de Fleming, com Sean Connery no papel principal. A mensagem é subliminar, mas exata: Draper imita Bond, o espião que todos querem ser, mas não tem uma identidade própria. Ele vive duas vidas porque não passa de um fantasma — e quando uma loira apetitosa lhe pergunta se está sozinho, sua única resposta é o silêncio que mal reconhece a sua infelicidade.
A cada episódio, Matthew Weiner deixa mais claro que a sua primeira intenção era mostrar a inquietude existencial de cada personagem, acumulando tudo na consciência atormentada de Draper. Isso fica explícito na temporada final, em que, num detalhe que poucos críticos conseguiram perceber, fica nítida a homenagem que Weiner faz a Don DeLillo, em especial a seu primeiro romance publicado, Americana (1971), precursor de muitas coisas de Mad men, da história aos diálogos, passando pela ambientação e até mesmo o arco dramático.
Reinvenção
O mote é o mesmo: o publicitário David Bell passa por uma crise ao ter aquilo que Ernest Becker chamava de “a negação da morte” e resolve abandonar a vida falsa que levava, indo atrás de uma existência mais autêntica nas regiões profundas da América. Weiner faz a mesma coisa não só com Draper, mas também com todos os outros personagens. Cada um deles é obrigado, pelas forças das circunstâncias, a se reinventar novamente, mesmo de forma dolorosa, e descobrir dentro deles o impulso que lhes daria a força para mudarem de vida — e para melhor. É o caso de Roger Sterling, que deixa de ser o bon vivant estoico e passa a considerar a possibilidade de ter uma família; o de Peggy Olson, que, após conquistar seu lugar no mercado, pode se abrir para um relacionamento; o de Joan Harris, antes uma mera secretária de escritório e agora uma mulher de negócios; o de Pete Campbell, conhecido como um janota esnobe e que se dá conta que só a mulher e a filha lhe darão a paz tão desejada; o de Betty Francis que, em vez de lidar com uma doença terminal por meio da fuga, como seria o esperado, resolve aceitar o fim com uma dignidade impressionante; e o do próprio Don, largando tudo pelos ares e saindo em busca de sua verdadeira identidade, mesmo que tenha de perder o que já tinha conquistado.
Neste sentido, Matthew Weiner levou à perfeição aquilo que David Milch já tinha feito em Deadwood: se um escritor tiver compaixão por seu personagem, até o mesmo o mais desprezível deles tem chance para encontrar a redenção. Contudo, se Milch faz isso dando um tempero de cristianismo agoniado, comum a quem foi influenciado pelos romancistas do Sul, Weiner não hesita em acrescentar um toque de ironia tipicamente judaica. A última cena de Mad men nos mostra um Don Draper reconciliado consigo mesmo, mas também retrata que sua vida interior não passa de um comercial feito para vender coca-cola — um momento supremo de sarcasmo agridoce, em que o correlato objetivo é usado para provar que, na hora de contar uma história, a literatura é a única das artes que faz avançar a dramaturgia de qualquer série ou filme. No mundo criado por Matthew Weiner, só se vive duas vezes nesta vida porque todos têm a oportunidade de recomeçar — o que faz um escritor repensar seriamente se o mundo em que nós vivemos hoje em dia daria a mesma brecha a um personagem que vive em um ambiente repleto de malícia, enredado em uma teia de corrupção. Na verdade, o que poucos sabem é que esta é a única pergunta que importa na hora de se criar qualquer história, especialmente aquela que nos obriga a viver uma única vez.
NOTA
Este é o segundo texto de uma sequencia de seis ensaios que falará sobre como o sucesso das grandes séries da televisão americana está relacionado com o uso da literatura na criação dos seus enredos e de seus episódios. Em dezembro, texto sobre The wire, de David Simon e Ed Burns.