Só bons retalhos

Apesar do domínio estilístico, "Sem rumo", de Cyro Martins, é narrativa frágil devido à falta de coesão, à inexistência de um enredo que congregue os dramas pessoais
Cyro Martins, autor de “Sombras da correnteza”
31/10/2017

O neuropsiquiatra Cyro Martins — militante do Partido Comunista Brasileiro, colaborador de A Tribuna Gaúcha (jornal que pertencia à rede de periódicos criada pelo PCB na década de 1940, denominada “imprensa popular”) e da revista Horizonte (a partir de 1950, seguidora da estética do Realismo Socialista) — estreou na literatura em 1934, com a coletânea de contos Campo fora. Três anos depois, lança a novela Sem rumo, primeiro volume da chamada “trilogia do gaúcho a pé”, à qual pertencem os romances Porteira fechada (1944) e Estrada nova (1954). Ao revisar a novela, em 1977, o autor passaria a tratá-la como romance, por concluir, afirma no Prefácio, “que esta é a classificação que lhe senta melhor”, justificativa, convenhamos, que nada explica.

Delineia-se, nas três obras, o tema daqueles que são expulsos do campo pela modernização da agricultura e da pecuária, situação que o autor dramatiza ao definir seus protagonistas como homens “sem eira nem beira”, esforçando-se por caracterizar “a comparsaria cachaceira que apinha os bolichos (bodegas de secos e molhados) da beira do povo”, as “mulheres sofredoras, tristes criaturas sem nenhuma esperança”, as “crianças andrajosas, desnutridas, formigando na aldeia suja, cozinhando aos sóis violentos do verão e tiritando de frio quando sopra o minuano varredor”, inserindo-os em contextos nos quais uma suposta ética gaúcha se desintegra, dando espaço à “japa” (propina), aos “desmandos policiais”, às “falcatruas eleitoreiras” e “um escangalhar-se dia a dia, escorregando sem parar barranca abaixo na vida”.

Distante do estilo e da temática escolhidos por Dyonélio Machado, seu contemporâneo, Cyro aproxima-se do regionalismo de Simões Lopes Neto, Alcides Maya e Darcy Azambuja — não é superior ao primeiro, recusa as fórmulas decadentes, alencarianas, do segundo e tem momentos de rara força estilística, exatamente como Azambuja.

No centro de Sem rumo encontra-se Chiru, apresentado em cena do Capítulo 1, na qual o adolescente se entrega ao devaneio enquanto fiscaliza o burrico que faz o moinho funcionar. Na estância decadente, o assobio de Chiru e o milho esfarelando-se sob o peso da mó compõem música atemporal, interrompida pelo pica-pau que martela uma árvore próxima. Na sequência perfeita, o garoto vê-se com a pedra na mão e, obediente ao instinto, mata a ave, arrependendo-se logo depois. A mesma cuidadosa psicologia ressurge no Capítulo 2, em que o narrador penetra a consciência de Evarista, dominada pela presença opressora do marido:

(…) Não tardava, ele saía para o galpão, para as mangueiras, para o campo, para a lida diária, enfim, a dar ordens. Ficava depois tão bom aquele quartinho apertado de cozinha, paredes tortas, sem reboco, e coberta de capim. Então, ela podia chegar sem constrangimento ao catrezinho dos filhos e mimá-los, acariciá-los, sem pensar, por momentos, na inclemência da vida. E tinha todo o pátio para andar à vontade. Ficava ligeira, remoçada. Os olhos pesados de longas insônias dilatavam-se iluminados de alívio, ao contato penetrante da água fria da pipa. E do pensamento das mãos, dos peitos, das ancas, do corpo todo afinal, ia-se desprendendo aos poucos a lembrança da presença truculenta de Clarimundo. À maneira que se agrandava a sua alegria, afastava-se a sensação de medo que lhe vinha daquela assistência calada e hostil, esbatendo-se até ficar vaga reminiscência, como um pesadelo da outra noite, mal lembrado.

O estudo da psiquiatria contribuiu à formação dessa habilidade para descrever o interior de alguns personagens. No Capítulo 8, Filipe migra do sonho à vigília, e desta novamente ao sonho, numa confusão mental cujos deslocamentos são quase imperceptíveis, tal é a delicadeza do entrelaçado em que surge o fantasma cuja brancura se mescla ao luar e aos gansos do açude, até que a realidade estilhaça o sonho. Um pouco antes, no Capítulo 5, Chiru surge transformado no gaúcho mítico, mas percebemos que se trata apenas de sua imaginação, jogo convincente que o autor arquiteta, conduzindo-nos pela fímbria entre sonho e realidade.

Sua perícia revela-se também nas descrições da natureza, repletas de lirismo comedido, como neste trecho do Capítulo 9:

Tinha parado a chuva. Uma chuvinha mansa, medrosa, que desde o amanhecer matava a seca, devagarinho. Nem no terreiro, nem nos campos havia água empoçada. A terra bebera, voraz, todas as nuvens. Céu limpo, horizonte claro e chão quase enxuto. Pairava no ar uma serenidade de êxtase. Os cinamomos, numa fruição de gozo quase animal, espalmavam as voluptuosas folhinhas. Adivinhava-se o sensualismo delas, impregnando-se, lentamente, da orvalhada apetecida. No topo de um moirão, sentou um joão-de-barro. Teso, fanfarrão, o bichinho. (…)

A entrada de Chiru na maturidade ocorre num rito de passagem descrito no Capítulo 10. A empolgação do leitor cresce ao acompanhar os peões que guasqueiam suas montarias: “A cada pisada dos cavalos fervia uma vertente, com um rangido fresco de arreio novo”. No Capítulo 12, Manuel Garcia, homem simples, vivendo entre bois e arado, transforma-se, por exigência dos políticos locais, em professor da inútil escolinha rural. Envaidecido pelos falsos elogios, sua primeira preocupação é o uso da palmatória, mas logo acorda do sonho, obrigado a capturar a porca que invade sua plantação de batatas: derrubado pelo animal, “Manuel Garcia de repente virara Maneco outra vez”, suando, canelas esfoladas, sujo de terra.

Depois que Chiru abandona a estância, na tentativa de se unir, supomos, aos revolucionários de 30, começa sua decadência. Esconde-se graças ao auxílio de Tomás Barbosa, antigo chacreiro da região, aprende a jogar, beber, mentir; é preso na cidade, foge, passam-se quatro anos, torna-se mascate, vive de forma inconsciente, ao sabor dos acontecimentos, e passará a coabitar com Alzira, tornando-se, depois, boteiro. Enquanto troteia no campo aberto, dirigindo-se ao encontro da futura mulher, “a alma simples do índio se recolhia, acompanhando a alma grande dos campos na paz do anoitecer”. Trata-se do núcleo da narrativa, este trecho do Capítulo 21:

agora as sombras iam se encontrar mansinhas, humildes, não querendo assustar os viventes, quando a cheia, viva e enorme como um espanto, rasgou o fundo do céu (…). E uma bruta saudade, grande como a lua, acendeu de supetão na alma do gaúcho. Uma gana de voltar pelos caminhos andadosDe ser outro, de ser como contam que foram os gaúchos andarengos de antigamente. De ser o que decerto fora seu pai, um índio vagoO que era ele, Chiru, o mascate, o lambe-espora? Um sotreta!

E o que seria, se vivesse naquele outro tempo, no tempo das adagas grandes, das pilchas prateadas, das onças sonantes, dos pingaços de lei, das distâncias sem fim? Seria um campeiro guapo, um andarengo, um valente! (…)

No que se refere aos diálogos, bem elaborados, leia-se, no Capítulo 23, a conversa entre Lopes, dono de um bolicho, e Chiru, na qual está presente a manipulação que, até hoje, determina o resultado das campanhas eleitorais em grotões do Brasil.

A qualidade do conjunto, entretanto, é desigual. Um bom exemplo encontra-se exatamente no Capítulo 23, em que, após o diálogo de Chiru e Lopes, surge, fora de lugar e sem naturalidade, o discurso imaginário e as reflexões do médico Rogério, candidato da oposição. O maniqueísmo com que Cyro Martins trata a política, como se fosse possível dividi-la entre bons e maus, falsos e verdadeiros, contamina o próprio narrador e revela, sob o discurso recheado de lugares-comuns, a voz do autor comunista.

Mas o problema maior é a falta de coesão, a inexistência de um enredo que congregue os dramas pessoais. Quando, no início, os personagens começam a surgir, inseridos em diferentes situações, temos a expectativa de que o autor concatenará os fatos — mas tal esperança se dissipa, restando ao leitor perplexo um conjunto de figuras desunidas, que nunca interagem. Não há continuidade nessas vidas que, ao final, formam não uma novela, muito menos um romance, mas apenas certa coletânea de passagens curiosas, nas quais Chiru às vezes perambula como um ser diáfano. O tempo em que a narrativa transcorre é apenas sugerido, esgarçando ainda mais as lacunas que nem mesmo um leitor imaginativo preencheria. Só o domínio estilístico sobressai desses capítulos meramente contíguos, com raríssimos conflitos. O drama existencial de Chiru, diminuído para dar protagonismo aos vícios da disputa eleitoral, ressurge nas últimas linhas, “apelo campeiro gritado dum fundo remoto”, mas esgota-se na melancolia que encerra a narrativa alquebrada, colcha mal urdida de bons retalhos.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Abguar Bastos e Safra.

O AUTOR
Cyro dos Santos Martins
Nasceu em Quaraí (RS), em 5 de agosto de 1908, e faleceu em Porto Alegre, em 15 de dezembro de 1995. Presta concurso, em 1938, para o cargo de psiquiatra do Hospital São Pedro e participa da fundação da Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal. Em 1951, completa a formação psicanalítica em Buenos Aires. Torna-se presidente da Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e Neurocirurgia em 1957. Deixou inúmeros trabalhos científicos, alguns traduzidos para o espanhol e o alemão. Na ficção, além de contos e novelas, publicou os romances Sombras da correnteza (1979), Gaúchos no obelisco (1984), Na curva do arco-íris (1985) e O professor (1988).

Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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