“A cidade anoitece em sonhos tortos/ Na verdade, nada é o que parece ser/ As pessoas enlouquecem calmamente/ Viciosamente, sem prazer”.*
O trecho acima é da música “Essa noite, não”, de João Luiz Woerdenbag, mais conhecido como Lobão, na época em que ele não era editor de revista ou apresentador de programa de tevê, mas, sim, polemista, cantor e compositor. Mas o leitor pode ficar tranqüilo. Não se vai nesse espaço realizar um revival dos anos 80, a mais nova tendência da música pop. Em verdade, a letra da música de Lobão tem muito a dizer a propósito do livro Paciente 67, de Dennis Lehane. O motivo de tal associação ficará claro nos próximos parágrafos. Antes, cabe explicar um pouco acerca do autor e de sua obra.
Dennis Lehane é, ao que parece, o romancista policial do momento. Para os leitores que jamais leram qualquer um de seus livros, basta citar aqui uma das obras que já foram adaptadas para o cinema: Sobre meninos e lobos, estrelado por Sean Penn e Tim Robbins, e dirigido pelo também novo Midas Clint Eastwood. A propósito desse livro, o que mais chamou a atenção na história é o fato de o autor ter investido numa linha inusitada de narrativa. Em vez de se fixar na ação, Lehane carregou na sensação, fazendo com que a história fosse mais sombria do que aventureira, anulando, assim, uma das críticas mais fáceis que se fazem a esse gênero: o da inconsistência das tramas, uma vez que estas tinham de apelar a pirotecnias e outras fórmulas prontas para que a história vingasse.
Em Paciente 67, o autor mais uma vez se destaca por fugir à regra das tramas policiais de ação e suspense, para o bem e para o mal. Isso porque, ao contrário do que os leitores podem esperar, o cerne da história está fora do campo das especulações e das conjecturas dos adivinhadores de clichês, ainda que o autor utilize alguns elementos clássicos da literatura policial. Desse modo, tem-se como personagens centrais os detetives Teddy Daniels e Chuck Aule. Ambos estão à procura da fugitiva Rachel Solando, acusada de assassinar friamente seus três filhos. Misteriosamente, ela conseguiu fugir da sombria clínica-prisão do Hospital Psiquiátrico Ashecliffe. Pode-se, com razão, argumentar na tese de que, por aqui, já bastam os dados para uma história policial que qualquer autor médio poderia construir: uma espécie de polícia e bandido, recheado com diálogos pretensamente engraçados, remontando à velha tradição de xerifes e policiais norte-americanos — o povo que o mundo adora odiar.
Entretanto, o destaque para a obra de Lehane é justamente o fato de o escritor não ficar no imaginário possível: aposta, isto sim, numa vertente muito mais perigosa e, perdoem o chavão, labiríntica da história a partir da perspectiva da sua personagem principal, o detetive Teddy Daniels. Desde o início, é ele a persona a mostrar mais e mais de seus traumas dentro de uma prisão psiquiátrica, a ponto de suas dúvidas e temores se confundirem com as inquietações de alguns médicos no tocante à sua conduta. Nada disso o desvencilha, no entanto, de buscar Rachel Solando. Uma perseguição que, de tão obstinada, chega a ser cega, a ponto de o xerife não ser capaz de perceber o mundo que o cerca (ou do qual ele vive à margem, há tempos).
Nesse ponto, ele percebe que talvez esteja sozinho, embora freqüentemente ouça os ruídos de sua memória acusando o passado da Segunda Guerra, ou do assassino de sua mulher, Dolores, que, não por acaso (como nada é por acaso na literatura de Lehane), está também no mesmo Hospital Psiquiátrico. Ah, um dado quase que passa sem ser devidamente assinalado: a história se passa na década de 50, daí o clima absolutamente noir, sombrio, fechado que permeia a narrativa do livro. Por mais que as descrições tentem desbravar e desanuviar o ambiente, a impressão que fica é a de um lugar absolutamente obscuro, no qual os acontecimentos são não menos que surpreendentes.
Se o leitor está pensando em algo do gênero Stephen King, esqueça. Aqui, a trama é mais ardilosa. E, nesse sentido, não é absurdo afirmar que Lehane faz um thriller psicológico, no qual as pistas, por mais que óbvias e patentes diante dos olhos dos leitores, estão realisticamente fora de qualquer esquema preconcebido pelos leitores. Se fosse honesta uma comparação com o já citado Sobre meninos e lobos, caberia dizer que alguns detalhes do livro denunciam muito mais uma crise entre amigos do que necessariamente um trauma de infância que, uma vez não superado, se torna o fantasma do personagem principal. Isso faz com que a história seja contada sob uma perspectiva aparentemente suave e tranqüila, quando na verdade pulsa temor, tremor e, sobretudo, esperança e amor para toda vida.
A emoção, desse modo, é guardada para quando os leitores menos esperam. E mesmo essa sensação, nesse tipo de história, conta com um elemento diferente. Novamente, a perseguição ou a troca de tiros aqui são peças secundárias. Em contrapartida, sobram efeitos que sugerem olhares, gestos e confrontos, graças aos quais os leitores ora sentem a história fluir, ora têm a sensação de que a narrativa emperrou e se perdeu em meio a tantas descrições de lugares e outras peculiaridades.
Silogismo e retórica
Um dos trechos que mais chamam a atenção é o momento em que Teddy Daniels, desconfiado de que tramam algo nas suas próprias costas, se encontra, inesperadamente com a fugitiva Rachel Solando: é ela quem lhe avisa sobre os perigos e a realidade do lugar. Segue um trecho do diálogo:
Não estou louca. Não mesmo. Evidentemente isso é o que todo louco diz. É o espírito kafkiano da coisa. Se uma pessoa não está louca, mas afirmaram que ela está, os protestos dela só confirmam o que disseram […] Parece um silogismo, que começa com a seguinte premissa: os loucos negam estar loucos. […] Bob nega ser louco. Logo, Bob é louco.
E mais para frente, sempre segundo Rachel, tem-se a conclusão: “Se você é considerado louco, todos os atos que, de outro modo, provariam que você não o é passam a ser vistos como ações de uma pessoa louca”.
O que parece ser um artifício de retórica, cheio de frases e simulações entrecortadas, acaba por ser uma das poucas pistas que Daniels e o leitor têm de descobrir o que se passa no local em relação aos pacientes. Há alguns indícios, mas nada que chegue a medir a veracidade da história que se passa com o detetive. E a revelação final é a que promete a redenção.
O livro tem tudo para ser comum. Personagens datados, sem qualquer ligação com o presente — por mais que exista, aqui e ali, alguma relação com a política norte-americana atual (nesse caso, serve mais para provar que o mundo já foi cruel mesmo antes de Bush e as prisões em Guantánamo, em Cuba, ou Abu Graib, no Iraque). E, com efeito, chega-se até a desconfiar, dado o desenrolar da história, que o autor prefere o final feliz. Mas a redenção da última linha do parágrafo anterior é de outro gênero: é o final feliz do autor a despeito das expectativas de seu público, como se o artista, enfim, dissesse que o final feliz para determinadas histórias mantém seu fundo triste e sombrio. As maiores surpresas, enfim, surgem desse tipo de reação.
Se com o romance policial, a literatura já foi acusada de condescendente e menor por fazer concessão a personagens com estereótipos fixos e sem personalidade, Dennis Lehane, em seu Paciente 67, faz uma literatura em que os clichês traem a si mesmos, ora por ato falho, ora pelo auto-engano. Afinal de contas, o thriller, ou o romance de suspense, pode ser muito mais do que histórias de terror ou tramas com perseguição entre as ruas das grandes cidades, para fazer menção ao chamado romance urbano. Existe história possível para além da perseguição, pois, como já estava escrito na música que abre este texto, na verdade, nada é aquilo que parece ser.
* Música escrita por Lobão, Bernardo Vilhena, Ivo Meirelles e Daniele Daumière.