Apesar das novas proposições em relação ao ensino das artes, é difícil afastar da análise literária conceitos estilísticos, de acordo com os quais num dado tempo predominou um modo específico de expressão. A dificuldade se dá por estarem tais conceitos enraizados há muitos anos nos estudos, e também porque a classificação estilística mostra suas conveniências.
Dentro dessa linha de reflexão, percebemos que dois tipos de autores inserem-se na historiografia artística: os “oficiais”, em cujas obras são exibidas substantivamente as características da escola em voga na época em que viveram; e os transgressores, a destoarem da moda, do senso comum, da camisa-de-força em que não raro se tornam as convenções.
Só que todo rio tem uma terceira margem, e a história da arte reserva poucos lugares aos raríssimos autores que estiveram dentro e fora de seu tempo. Esse é o caso do maranhense Sousândrade, autor de peças modernas incompreendidas na romântica época de sua vida, criador de textos românticos ignorados no moderno tempo de sua ressurreição literária. É o que vemos em Melhores poemas, com seleção, notas e prefácio do poeta Adriano Espínola.
São muitos os méritos do organizador da obra, a começar por uma pesquisa de fôlego com base na obscura biografia de Sousândrade e com sólida equipagem teórica a respeito das peculiaridades do texto poético. A soma de tais aspectos é manifestada nas notas de rodapé e nos comentários dispostos ao lado de alguns poemas, a fim de que seja garantida ao leitor maior clareza quando da leitura da poesia por vezes obscura do autor de Harpa de ouro. “A sua pessoa excêntrica somava-se à impressão de uma obra igualmente estranha, labiríntica, de difícil compreensão”, diz a introdução, precisamente intitulada O irisado Sousândrade.
E a maior fatura de Espínola consiste na sábia maneira de perceber a obra de Sousândrade para além da monoperspectivação com que geralmente ela é tratada, pois se durante largo tempo os manuais atestaram ser o maranhense um representante da segunda geração romântica, os estudos responsáveis por sua retirada do ostracismo (em especial, ReVisão de Sousândrade, de Augusto e Haroldo de Campos) apontam-no exclusivamente como um artista moderno, autor de uma poética atemporal em termos de classificação. É o antigo caso em que a suposta correção de um erro generalizador erra por alardear seu acerto como fato único, generalizando-o também. Sobre isso, Adriano Espínola afirma: “Ao longo do tempo, ocorreu, assim, uma dupla injustiça. De um lado, ignorado como romântico e incompreendido como inovador, na sua época; de outro, supervalorizado como precursor vanguardista e ignorado como romântico, setenta anos depois”.
A legitimação do comentário advém da própria poesia de Sousândrade, composta por livros bastante díspares, como O Guesa e Harpas selvagens. Para quem já se acostumou ou conhece apenas a imagem do Sousândrade revolucionário, causa surpresa ler, no último livro citado, os versos de No Maranhão, repletos do açúcar e da aquarela idealizada: “Volto à cândida capela,/ Tão cheia de luz, tão bela,/ Onde as salva a donzela/ Canta, e olha ao lavrador;/ Volto aos campos da harmonia,/ Vaga infinda poesia,/ Doce inata simpatia/ Da natureza de amor!”.
Ao lado desses versos nacionalistas, convivem outros impregnados por outras fortes marcas da estética romântica, como o escapismo lúgubre, com o qual o poeta acrescentou uma faixa negra ao seu arco-íris, vista em Voar: “Qual voa o negro corvo,/ Quisera eu livre ser,/ No seio azul do espaço/ Voar e me perder;// Voar, voar, nos ventos/ As asas estender;/ Co’as nuvens embalar-me/ Voar e me perder.// Voar sempre, fugir-me,/ No éter me esconder,/ Fugir, fugir da terra,/ Voar e me perder.// Direita ao sol dos trópicos/ Soltar minha alma a arder/ Nas chamas que a devoram —/ Voar, voar, morrer”.
É notório que tais poemas não o colocam em pé de igualdade com Gonçalves Dias ou com Álvares de Azevedo. Sendo assim, foi por sair do Romantismo que Sousândrade entrou em nossa história literária. O famigerado O Guesa é, simultaneamente, um poema épico, dramático e lírico, se concordarmos com Adriano Espínola quando diz que o personagem mítico do Guesa (oriundo dos índios muíscas da Colômbia) funciona no texto como alter ego do autor. A palavra “guesa” significa “errante”, “sem casa”, simbologia aplicável ao poeta, considerando que inúmeras viagens internacionais fizeram dele um homem cosmopolita: “Vinde a New-York, onde há lugar pra todos,/ Pátria, se não esquecimento, — crença,/ Descanso, e o perdoar da dor imensa,/ E o renascer-se à luta dos denodos”, conclama a primeira estrofe do Canto X.
Tal amplidão geográfica será decisiva para a arquitetura formal do longo poema, em especial por seu reflexo no curioso recurso rimário, quando palavras de idiomas diferentes serão alinhadas pela semelhança fonética: “— E forma-se em Castle-Garden,/ Que vem de todo o mundo, dos que asilo/ Já não tinham, a quem os peitos ardem/ De espr’ança nova ao céu novo, tranquilo”.
Mas nem sempre novidade rima com qualidade, e o mais conhecido poema de Sousândrade em muitas de suas linhas resume-se a uma simples quebra da convenção, como exemplifica a passagem: “— Jurado de todas Américas,/ Qual Colombo sou cidadão./ = Bíblio… com Jacó e o café/ Dos ‘Cânticos’; …fé;…/ Opor à ratoeira a razão;…/ E julgar à vivissecção!”. Nesse contexto, o parecer do organizador da antologia merece destaque: “É verdade que se acha no mesmo Sousândrade inovador, ousado, uma série de lugares-comuns, ao lado da insuficiência expressiva e associações aparentemente alógicas, tendendo a obscuridade”.
O ponto alto d’O Guesa é a percepção da selvageria capitalista, no famoso episódio “O inferno em Wall Street”, prenúncio vanguardista. Nele vemos o sujeito lírico cantando os avanços da metrópole regida pelas finanças, no mesmo passo em que se choca contra eles: “— Mas no outro dia cedo, a praça, o stock,/ sempre acesas crateras do negócio,/ o assassínio, o audaz roubo, o divórcio,/ ao smartianque astuto, abre New-York”.
Por tais aspectos, a poesia de Sousândrade coloca-se ao lado da dos inovadores de nossa literatura, sem necessariamente avizinhar-se da dos maiores. Ele, primeiro prefeito republicando da cidade de São Luís, homem e poeta do mundo que foi, construiu um arco de fato multicor, ora desenhado com pena de corvo, ora tingido com a fumaça das chaminés ocidentais.