O cavaleiro azul (Der Blaue Reiter) teve vida breve, mas foi de uma profunda intensidade. Como se sabe, a ideia inicial de um periódico que pudesse dar conta das discussões artísticas no começo do século 20 não foi levada adiante; porém, não naufragou totalmente, sobrevivendo no almanaque expressionista que agora chega ao Brasil, em uma cuidadosa edição coordenada por Jorge Schwartz.
Pensado na primavera de 1911 e publicado no início do ano seguinte, O cavaleiro azul teve apenas um volume e se desfez com o grupo de artistas que o idealizou, apesar de também ser verdade que entre os próprios membros já havia divergências: em 1914, Franz Marc e August Macke morreram na guerra, e Wassily Kandinsky retornou para a Rússia.
O almanaque coeditado pela EDUSP e pelo Museu Lasar Segall inclui o prefácio do segundo volume da publicação, junto ao interessante posfácio de Annegret Hoberg sobre a história do volume inconcluído. Já a epígrafe da apresentação de Schwartz, retirada da carta de 9/10/1911 de Kandinsky a Marc, não poderia ter sido melhor escolhida para expressar a efervescência desses artistas: “É tão maravilhoso que haja atualmente tantos sons diferentes. E todos juntos formam a sinfonia do século 20”.
Sem dúvida, O cavaleiro azul assinala a complexidade do século que estava apenas engatinhando mas já enfrentava limites e embates com a eclosão da primeira guerra. Como pontua Schwartz, o periódico não pode ser visto como um ponto isolado no universo: “Ele foi antecipado por uma série de manifestações de artistas que foram se aglutinando e migrando para outros grupos, em função de ideais comuns e de dissidências (as várias Secessões)”.
Pluralidade artística
“O nome Der Blaue Reiter nós criamos sentados à mesa posta para o café, sob o caramanchão do jardim em Sindeldorf”, lembra Kandinsky. “Ambos amávamos o azul, Marc gostava de cavalos, eu de cavaleiros. Então o nome surgiu por si mesmo”. Em Do espiritual na arte, contemporâneo ao almanaque, Kandinsky já definia o azul como a “mais espiritualizada das cores”.
Usou-se o termo “grupo”, mas deve-se lembrar que diferentemente de Die Brücke (A ponte), movimento anterior e de grande importância, a reunião em torno de O cavaleiro azul não operava a partir de um programa estabelecido. A organização interna era dada, talvez, por três características peculiares: ser cosmopolita, portanto não se limitar a uma dada cultura nacional; ter caráter aberto em relação a outras manifestações artísticas, o que significava não se concentrar somente na pintura (a relação com a música é fundamental); repensar a linguagem pictórica, atribuindo um valor simbólico à cor e lutando contra o naturalismo pela liberação das formas.
Todos esses elementos proporcionaram aos membros do grupo — August Macke, Paul Klee, Alexej von Jawlensky e Alfred Kubin, entre outros — uma abertura ao universo poético e à poeticidade. Não existe a tentativa, portanto, de abraçar nenhuma tendência; o foco está nas múltiplas formas e na montagem de “justaposição das manifestações mais diversas”.
Debate teórico
Mil novecentos e onze é o ano da primeira exposição do grupo, seguida por outra, igualmente famosa, em 1912. Sempre baseadas em Munique, elas seriam centrais para o desenvolvimento da pintura figurativa.
Mas além das obras, era com escritos teóricos (e polêmicos) que o grupo trazia as motivações do artístico para o debate. Seu foco era enfatizar os impulsos interiores do artista em relação à realidade, abrindo, assim, caminhos para novos tipos de experiências.
A tensão se trava na superação de um materialismo que não dava conta das experiências interiores. Contatos, contágios, mesclas são por eles privilegiados por meio do abstrato e da esfera do elementar, que se chocam com um determinado modo de ver em vigor. Em Bens espirituais, assinado por Franz Marc, tal questão é posta em jogo: “É estranho que o ser humano atribua valores tão diferentes a bens espirituais e materiais”. As imagens que acompanham o texto podem causar estranheza, pois deslocam o leitor do seu confortável cadinho: pintura chinesa e bávara, Picasso e desenhos infantis.
Os demais artigos, assinados por nomes como David Burliuk, Arnold Schoenberg e Nikolai Kulbin, além da composição cênica de Kandinsky, colocam em cena essa montagem e a justaposição de tendências e pluralidades culturais. Os textos são habitados por reproduções de desenhos infantis, máscaras, partituras, esculturas, pinturas, bordados — enfim, trazem a complexidade da própria arte que não é e não pode ser una.
A experiência das relações múltiplas no laboratório O cavaleiro azul, no entanto, não acaba com ele, como aponta o professor de história da arte Uwe Fleckner em Coleções literárias (7Letras): a revista Documents, editada por Georges Bataille, teve um parecido “procedimento experimental”.
A explosão de uma visão “unicista” se faz presente no leque cultural, que se vai abrindo, ao folhear essas páginas: um “mapa” conceitual que dá conta, praticamente, de todos continentes. Abrir o almanaque O cavaleiro azul é se deparar com e, sobretudo, ver o outro. Talvez esse seja, ainda hoje, o grande desafio.