Em Ensaio de Orquestra, de Frederico Fellini, uma orquestra se reúne para tocar em uma capela antiga. Os músicos vão chegando, retirando seus instrumentos dos estojos e afinando-os, cada um independente dos outros, em uma polifonia desafinada de sons que dão o fundo para o enredo que se desenvolve. Se alguém já teve a chance de ver uma orquestra sinfônica se preparando para tocar, não o exato instante em que entra o maestro, mas aqueles antes, em que os músicos estão se sentando, tomando suas posições, conhece o som. Aquela confusão traz em si todo o potencial que uma sinfônica possui: um monte de instrumentos que juntos são fortes, potentes e, se bem conduzidos e com a música certa, podem lembrar trovões, guerras, batalhas e outras situações de força. Imprescindível a condução certa. Do contrário, a orquestra se perde e o som sai meio que pelo avesso, fraquinho, uma lembrança do que poderia ser.
Assim é Estudo das teclas pretas, primeiro romance de Luiz Paulo Faccioli. As personagens são bem trabalhadas, o enredo é bom, promete muito, as locações são apropriadas, cenas, situações, tudo está bom. No entanto, a sensação é a do instante da afinação da orquestra. Ou usando uma comparação gastronômica, Faccioli tem todos ingredientes para fazer um superprato. Mas a receita não sai exatamente como ele queria, deixando um pouco a desejar.
(É necessário avisar desde já que não sou exatamente um apreciador da música clássica, prefiro o rock’n’roll. À sutileza do clássico prefiro a pegada direta do rock. Luís Antônio Giron, autor da orelha, compara o livro à “voz oculta” do compositor alemão Robert Schumann. Talvez pela minha preferência musical, não tenha entendido as sutilezas a que se propôs Faccioli. Paciência.)
A trama acontece em Porto Alegre entre os anos 70 e 80. O protagonista principal do livro é Paulo Amaro, menino de infância difícil e um solitário por natureza, que aos dez anos descobre a música por meio de uma via muito torta, e quando se empenha em aprender mais, descobre-se um virtuoso no piano. Aos 18 anos, Paulo Amaro parte para estudar na Faculdade de Música — Instituto de Artes de Porto Alegre. Lá, ele conhece o maestro Leopold Kaufman, outro personagem central no livro. Por meio do maestro ele conhece Lara, violinista também virtuosa que por uma série de vicissitudes retorna a Porto Alegre depois de uma longa temporada na Europa. Paulo conhece também Roswitha, a mulher estéril do maestro Kaufman. Esses são os personagens do quase presente narrado no livro. Quase porque a história se passa doze anos após o último encontro entre Paulo Amaro e Leopold.
Ao mesmo tempo em que Faccioli descortina o cenário do quase presente de Paulo Amaro, ele volta ao passado do personagem, procurando mostrar ao leitor quem é essa criatura que toca piano maravilhosamente bem, mas que não consegue se relacionar direito com os que vivem ao seu redor. Conhecemos então Antônia, a mãe firme e decidida, Beppe, o pai ausente, Ana Beatriz, a irmã que de tão diferente não parecia irmã, Vó Mimosa, que será o verdadeiro pilar da família, e o Primo Otávio, generosa alma que cedeu ao parente casa e piano para que este se desenvolvesse em sua arte.
As duas linhas do tempo se entrelaçam até que se misturam em uma coisa só, mostrando que tudo o que acontecia no quase presente tinha as suas bases no passado de Paulo Amaro, e que ele, apesar de ter nas mãos as ferramentas para superar qualquer tipo de problema, acaba sempre sucumbindo a eles. O autor mescla a primeira pessoa com a terceira na narração: hora somos um Paulo Amaro nostálgico, relembrando o que foi a sua vida, hora somos apenas um ouvinte dessa sinfonia que se desenvolve em nossas mãos. Longe de representar uma confusão, o autor consegue deixar claros os limites entre um e outro, sem atrapalhar o andamento de sua peça.
Uma das impressões que fica ao fim do livro é a de empatia com o gênio incompreendido. Paulo Amaro é um virtuose, mas vive de favores na casa do primo, sem nunca ter um puto dum tostão no bolso. Leopold Kaufman, maestro alemão judeu, fugiu de seu país natal para não ser perseguido pelos nazistas. Encontrando refúgio no Sul, onde se identificou com muita gente de descendência alemã e um clima parecido ao de seu país, acreditou que poderia perseguir seu sonho musical e nutrir o seu talento. Acabou encontrando um povo que toca música bem, sim, mas que é indolente ao extremo, impedindo assim que seus sonhos de montar um ambiente musical tão rico quanto o alemão vingassem. Lara abdicou de sua vida pessoal para tocar música, e suas relações, mais que físicas, acabam sendo idealizadas e platônicas. Roswitha pouco aparece, mas quando o faz mostra claramente que é importante para o equilíbrio do maestro.
Outra impressão, infelizmente mais forte, é de que o autor não investiu tanto na conclusão de seu enredo como na construção dos personagens. Percebe-se que há uma tensão crescente à medida que nos aproximamos do fim, mas essa tensão é muito sutil, tênue. O destino dos quatro personagens principais vai se entrelaçando como era mais ou menos previsto, sem grandes arroubos, mas em uma constante evolução. Há as cenas finais semelhantes às de um filme de ação (aquelas em que o mocinho tem dois minutos para desativar a bomba, o que seria muito fácil se ele não tivesse primeiro que acabar com o bandido), mas sem uma dramaticidade, um gran finale. Ficou mais como um piccolo finale. Mais ou menos como jogar uma bombinha na grama molhada, o pavio faz aquele barulhão e na hora da explosão, puff, pouca coisa, sorrisos de decepção, tapinhas nas costas, “bom, pelo menos valeu a expectativa”.
Estudo das teclas pretas é um bom livro. Talvez uma guitarra elétrica entrando rasgando tornaria a melodia de Faccioli mais viva, penetrante e emocionante. Mas contentemo-nos com a sutileza de um nocturne, soavissimo, dessa vez.