Já dizia Gregório de Matos que o todo deixa de assim ser quando lhe é amputada uma de suas partes. Nisso o poeta baiano fazia ressoar a voz de Heráclito, para quem as águas — todas — da vida caudalavam-se num único rio.
A poesia, que consegue a proeza de ser amiga alcoviteira e filha bastarda do mundo, já foi cavalos e naus na Grécia. Muito se desenrolou até que ela chegasse aos nossos dias, para estar em todos os lugares, encravada nas paredes do dia-a-dia, e em quase nenhum, dada a ignorância que lhe é dirigida.
Mas muitas coisas no mundo mantiveram-se paradas, ou no máximo fingindo movimento. Alguns chãos, como o dos rincões do Mato Grosso, resistiram à ordem do asfalto, e o subsolo ainda é um templo (laico e leigo) onde miríades de vermes pulverizam hipérboles biofísicas. E ali, no seio da bárbara ceia de horrendo milagre, há uma comunhão de larvas, insetos e detritos, a qual se vale de milhares de dentes de nervos para engendrar a engrenagem da revitalização, abrindo caminho para que a água faça a planta sorrir no viço de suas folhas. Só um menino ou um poeta poderiam ver nesse, de ouvido, um espaço propício à pescaria. Como é os dois, Manoel de Barros revela-se pescado em Poesia completa, para a qual nem mesmo ele inventou um adjetivo.
À procura de si
Como se pode imaginar, são muitos os feitos interessantes do livro, mesmo porque reúnem-se publicações iniciadas em 1937 e estendidas, de forma regular, até o presente ano (e quando há arte, quantidade e qualidade andam de mãos dadas, sem necessitarem da união civil oficializada). Visto que Manoel de Barros é um poeta bem conhecido (recentemente ele arvorou-se — arvorizou-se — nas telas dos cinemas nacional, na belíssima “desbiografia oficial” Só dez por cento é mentira, de Pedro Cezar), talvez seja melhor começar abordando partes menos comuns de seu percurso.
Desde o início, Manoel de Barros esteve à procura de si mesmo. Em sua estréia, com Poemas concebidos sem pecado (1937), já se percebem fagulhas da constelação em cadente progresso (talvez ele prefira em cadente regresso, até a estrela elevar-se a vaga-lume), como as imagens particularmente lúdicas – “A última estrela que havia no céu/ deu pra desaparecer/ o mundo está sem estela na testa” — e a instauração de um igualmente lúdico reino sem rei: “Um dia deu de olho com a menina/ com a menina que ficou reinando/ na sua meninice”, canta o poema Cabeludinho.
No entanto, salta aos olhos um lirismo de modelo inicialmente convencional, que se vai matizando aos poucos. Face imóvel, seu segundo livro, publicado em 1942, traz poemas em que punge a vontade de exprimir as brisas da inspiração, como diz Singular, tão singular: “Ó passar-se invisível pela alma da alameda de casas espaçosas/ Imaginando a feição ideal dentro de cada uma!// (…) Fique na nossa vida fresca e incompreensível/ Um mistério suave alisando para sempre o coração”. Poesias, volume publicado cinco anos depois, mantém-se nessa esteira, na qual por vezes interessa ao poeta declarar-se afetivamente integrado ao mundo, quando então o poema (Olhos parados) manifesta-se um abraço: “Lembrar da cidade onde se nasceu, com inocência, e rir sozinho./ Rir de coisas passadas. Ter saudade da pureza.// (…) Gostar desse momento. Gostar dessa emoção tão cheia de riquezas íntimas.// (…) Descobrir que não nos falta nada. Dar um suspiro bom de alívio,/ Olhar com ternura a criação e ver-se pago de tudo”.
É típico que as grandes obras sejam suas próprias e não raro suas melhores intérpretes, e tal fato aparece aqui em duas partes que se podem conjugar. Em Ensaios fotográficos (2000) nos é dito que todos os livros são repetições do primeiro, e em O livro das ignorãças (1993) grava-se um dos lemas da poética de Manoel de Barros: “Repetir repetir — até ficar diferente”. Dessa vez ele não finge ou mente, pois em seu segundo livro o texto Incidente na praia exibe um fator basilar da cosmovisão do poeta, desde sempre contrária ao que contraria a natureza infantil do homem: “Enquanto uns discutiam,/ Outros iam tratar da vida/ Isto é: iam jogar peteca”. Recuando ao início (trata-se de uma obra em ininterrupto estado de gênese), vê-se que, se Manoel ainda não tinha ido à musa, a musa já gorjeava para Manoel: “Musa pegou no meu braço. Apertou./ Fiquei excitadinho pra mulher./ (…) Minha musa sabe asneirinhas/ Que não deviam andar/ nem em boca de cachorro!”, diz o finamente cômico Informações sobre a musa.
O poeta ele mesmo
Mas é do Manoel de Barros plenamente Manoel de Barros que mais importa falar. Até sua escrita alcançar a singularidade que possui e manter-se unitária dentro de cada livro, um longo caminho foi percorrido, dentro do qual houve momentos irregulares.
Uma imagem forte que o poeta faz de si próprio é a de catador de coisas geralmente insignificantes para as sociedades industrializadas. E foi com esse princípio que ele tem construído o mosaico, a árvore frondosa de borboletas, pássaros e sapos, cujo ápice parece ser inegavelmente atingido em Livro sobre nada, de 1996.
O título do livro evidencia um fator de suma importância na obra de Manoel de Barros: a ruptura estrutural (num movimento mais profundo do que o das vanguardas convencionais) não somente com um modelo de composição artística, mas com toda uma maneira de conceber e de se relacionar com a realidade. Trata-se de uma poesia a repelir a razão das práticas ordinárias, mesmo em termos artísticos, como se indica no pretexto do livro: “Ele (Flaubert) queria o livro que não tem quase tema e se sustente só pelo estilo. Mas o nada de meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma por escrito”. Adiante, a contraposição à ordem da ciência e do tecnicismo (alicerces do mundo contemporâneo) vem em forma de assovio:
A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um/ Sabiá/ mas não pode medir seus encantos./ A ciência não pode calcular quantos cavalos de força/ existem/ nos encantos de um sabiá./ Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare./ Os sabiás divinam.
Diferentemente do que ocorreu com árcades e românticos, a natureza aqui não aparece como um cenário ou como marca distintiva da nação. A natureza é estado e essência, um reino de integração sem macro ou micro, sem sujeito e objeto, sem que tudo esteja a serviço do homem, o qual renasce sem as burocracias de sua arcaica evolução: “Eu queria crescer pra passarinho”.
A poesia que se lança a ser íntima de bichos e de objetos evoca para si o espírito infantil, a fim de que não seja cortado o seu caminhante nascer/renascer. A uma concepção de realidade radicalmente nova corresponde uma linguagem igualmente nova, porque em Manuel de Barros a poesia é um canto de resgate do homem, para recongregá-lo a um tempo do qual foi retirado para conquistar diploma e cartão de crédito. Quando se alardeiam diariamente os mandamentos e as fórmulas para uma vida de sucesso, a poesia nascida da terra e da lata, cantora da desimportância, abre seu arco-íris de deslições:
Tudo que não invento é falso./ Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira./ Tem mais presença em mim o que me falta./ Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário./ O meu amanhecer vai ser de noite./ Sábio é o que adivinha./ Para ter mais certezas, tenho que me saber de imperfeições./ Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore./ Peixe não tem honras nem horizontes.
São muitos os feitos de pássaro que nadam pelo livro em si e também por esta Poesia completa, que é um marco na história de nossa literatura e na história do ar onde o beija-flor faz poleiro.
A poesia de Manoel de Barros é uma sinfonia autêntica, visto reunir canto, dança, palavra e silêncio. O silêncio que só pode ser pronunciado pela criança, e que, antes de tudo, uma celebração amorosa da vida.