Simplicidade à prova

De maneira coloquial, Fernanda Young aborda temas carrancudos como a angústia, a solidão, certos desajustes sociais e a morte
Fernanda Young: violência do cotidiano tratada com matizes renovados e sutis.
01/02/2007

Paciente leitor, enquanto você me honrar com a leitura desta resenha, por favor, mantenha ao alcance de seus olhos o seguinte: “a literatura é plural e imprevisível, muito superior ao crítico e suas trágicas convicções”.

E principalmente de pluralidade trataremos a seguir. Convém lembrar que a autora de Vergonha dos pés está se transformando num de nossos preferidos sacos de pancada. Que Fernanda Young é antipática, pretensiosa, arrogante e outros adjetivos de igual teor, todos nós estamos cansados de ouvir. Não a conheço, mas também não posso ignorar que tenha talento. E quer queiram quer não seus detratores, é preciso admitir: Fernanda Young tem uma obra. E se nossos grandes em suas grandes obras deram suas derrapadas, por que à autora em questão não seria permitido. Dores do amor romântico é derrapada digna da apreensão definitiva da habilitação. Por favor, Fernanda, poemas nunca mais!

Aqui nos contentaremos em tratar da obra da escritora, suas demais qualidades ou defeitos não nos interessam.

Vergonha dos pés é precisamente o ponto de partida da carreira de romancista de Fernanda e, sem sombra de dúvidas, o seu ponto mais alto. A essa altura do campeonato se você é mais um daqueles que se deleitam quando alguém esculhamba a Fernanda, aconselho a mudar de canal. O propósito deste aprendiz é ser justo.

Cartas na mesa, vamos ao que interessa.

Aparentemente simples e aparentemente engraçado, incômodo e prazeroso, anuncia inúmeras qualidades e também os embriões dos defeitos que mais tarde predominariam nos demais livros da autora. Precisão e mordacidade nos diálogos, ao mesmo tempo exageradamente verborrágico, o que compromete o ritmo da narrativa, Vergonha dos pés, mesmo com essa ressalva, não deixa de valer a pena. O leitor poderá testemunhar tudo o que Fernanda Young poderia representar de renovador às nossas letras e que infelizmente não se confirmou.

Mesmo assim, Vergonha dos pés não é, felizmente, mais um daqueles livros que os críticos gostam de dizer que merecem mais de uma leitura. Bobagem, se está escrito na língua que o leitor domina, deve ser motivo de prazer e não um doloroso moto-perpétuo.

A estréia de Fernanda, a primeira edição é de 1996, exige atenção, muita atenção. Onde a princípio percebemos simplicidade, olhando bem, vamos notar uma sofisticada simplicidade. Mas como? Foi você quem perguntou? Simples e sofisticado? Pois é. Fernanda é tão simples que às vezes nós, os apressados críticos, confundimos sua escrita com equívoco. O coloquialismo não é nenhum crime de lesa-pátria e a autora o emprega na abordagem de temas carrancudos como a angústia, a solidão, certos desajustes sociais, os frustrados sonhos juvenis, e a morte, tornando-os leve ao leitor. Você que havia se espantado, entendeu agora a sofisticação?

De engraçado, o livro tem muito pouco e a graça tênue logo se dilui ante o patético e a rotina que corrói todo e qualquer sentimento, dos mais aos menos nobres. O cerne do livro é de uma aridez assustadora e a autora mais uma vez foi precisa ao encontrar no humor um providencial contraponto. Não fosse assim, deixaria abertas as lacunas por onde se aproximariam de forma bastante perigosa a ficção e nossa opressora realidade física. Em última instância, a morte.

Vergonha dos pés, peço licença à autora para chamá-lo de O livro de Ana, pois o feminino em seus encontros e desencontros se mantém em primeiro plano. A trama é conduzida por Ana, estudante de Letras, refém do tédio e da incapacidade de sentir-se protagonista da vida, o que no frigir dos ovos é condição sine qua non para dar sentido ao viver.

Ana inventa uma doença para não freqüentar as aulas, ao mesmo tempo escreve um romance, embora duvide de seu talento. Em sua trajetória pela estrada do amadurecimento, o amor é encarado com ceticismo de arrepiar e o sexo não tem compromisso com o prazer. A ambos Ana dedica a atenção merecida pelos lenços de papel.

Ciente de sua inadequação à engrenagem social, Ana não almeja integração, a erosão da vida não escolhe idade, e a jovem, ora em sua passividade, ora em sua movimentação desmedida, tenta diluir a dor, provavelmente fruto da ausência.

O livro que Ana escreve está plenamente integrado ao seu drama particular e aqui temos uma das maiores qualidades de Fernanda — a de permitir que o leitor se relacione criativamente com a obra. A autora cria um paralelo entre a vida da narradora e da personagem, metaliteratura na medida exata. Desse modo, consegue equilibrar realidade e ficção, racional e irracional. Invoca Eros e Tanatos, sexo e anulação. O passado em luta permanente para se fazer presente, uma obsessão que logo traz a lembrança de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Bem, agora aquela matilha que já babava pelo sangue de Fernanda deve estar sentido o cheiro do meu, mas alto lá; não a comparei a Proust, citei um aspecto. O que não é pouco.

Gosto pela leitura
Eu avisei no começo, está lembrado? Por baixo da aparente simplicidade está escondida a complexidade estética, emocional e intelectual. Dessa forma, Vergonha dos pés cumpre no entender deste aprendiz a mais importante função da literatura: a de renovar o gosto pela leitura.

Dizem as más línguas que Fernanda deu o pontapé inicial no que diz respeito à literatura pop em nosso país, o que é uma grande bobagem. Quem diz isso nunca leu Rubem Fonseca. E por falar no mestre da violência e das repetições, nosso autor mais injustiçado visto que recebe elogios imerecidos, Fernanda não dispensa a violência em sua narrativa, mas não carrega nas tintas. Traz à tona a violência do cotidiano tratada com matizes renovados e sutis, deixa exposta a violência maior, as garras do tempo e sua obra definitiva, a morte.

Vergonha dos pés não é um livro profundo, no entanto não deixa de ser complexo quando elege a morte, tema sempre relevante, como ponto fundamental às obrigatórias reflexões.

Para Ana, a morte deriva da ausência, do vazio, do desejo esquecido, quando me refiro a desejo não dou exclusividade ao sexo, mas, sobretudo, ao desejo de ser. Ao longo da narrativa o leitor é forçado a repetir a questão: “mas o que Ana quer”? Sua movimentação incessante a conduz ao esquecimento; e, por se esquecer, Ana renasce, como que condenada às repetições.

Ana nos permite conviver com uma das personagens mais desiludidas da nossa literatura, sua falta de ambição a leva a desistir de si mesma. Ana não sabe ser amada, Ana sabe sofrer, Ana talvez ame o desconhecido, Ana não pretende deixar rastro. Contraditória, Ana abandona a faculdade, pára; ao mesmo tempo anda quando escreve seu romance, o pretensioso romance que terá a missão de salvá-la. Salvá-la de si mesma. Ana deixa exposto o ridículo de todos nós. Não é pouco.

Paciente leitor, não espere encontrar novidades em Vergonha dos pés, porque não há novidade alguma a ser descoberta. O que você perceberá fartamente em suas páginas é o talento de Fernanda Young que simplesmente revela o tempo. Um tempo acessível a tantos eus.

Pensando bem, devemos admitir que Vergonha dos pés tem lá sua profundidade. Tem sim. Sigam Ana até aonde for possível, observem-na de frente e tentem não se ver ante os mesmos impasses que a atormentam. Fernanda emprestou ao tempo as formas de Ana. Conseguiu satisfazer a morte por breves instantes.

Sei que você está duvidando de tudo isso. Afinal de contas onde já se viu elogiar um livro de Fernanda Young!? Então leiam e depois conversamos.

Caso o dito acima não tenha significado muito, fique então com o que disse o escritor e meu professor Mariel Reis: “Para um romance de estréia, Fernanda Young conduziu de maneira elegante a trama”.

Vergonha dos pés
Fernanda Young
Ediouro
271 págs.
Fernanda Young
Nasceu em Niterói (RJ), em maio de 1970. Tem sete livros publicados: seis romances (Vergonha dos pés, A sombra das vossas asas, Carta para alguém bem perto, As pessoas dos livros, O efeito Urano, Aritmética) e um de poesias (Dores do amor romântico). Como roteirista, foi co-autora de vários programas de TV (Os normais, Os aspones, Minha nada mole vida) e de três longas-metragens (Bossa nova, Os normais — o filme, Muito gelo e dois dedos d’água). Atualmente, apresenta o programa Irritando Fernanda Young, no canal a cabo GNT, e assina uma página mensal na revista Cláudia.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho