Simples só na aparência

A linguagem clara e os versos livres longos são a marca de "Cabeça de Antígona", de Patricia Porto
Patricia Porto, autora de “Cabeça de Antígona”
30/06/2018

Cabeça de Antígona — o terceiro livro de poemas de Patricia Porto — é inclemente, direto, surreal. Antígona no título é a Antígona que paira em seu mundo grego de muitas ressonâncias, tanto dentro de várias pistas diretas dentro do livro (ora a voz poética parece identificar-se com Orfeu, ora com Prometeu, ora com Dioniso, mas sempre com Antígona) quanto tematicamente, no constante remanejamento ficcionalizado da ousadia da voz de mulher que se levanta com seu corpo e com sua poesia contra seu passado, contra a memória, contra a aparente justiça da ordem e do patriarcado. As palavras de Patricia Porto são as palavras que todos usamos. Ela não disfarça seu discurso poético por detrás de uma afetação poética de aspirantes a “versejadores de domingo”. Ela é direta e pungente. Paradoxalmente, escamoteia no aparente surrealismo das imagens uma saraivada de poemas violentos e petulantes, no melhor dos sentidos. A linguagem clara e os versos livres longos e cadenciados simulam uma simplicidade que desnorteia a leitora e principalmente o leitor.

Há, nas seis seções do livro — que trazem na sequência equações entre corpo e cabeça, memória, “a puta que vos pariu”, língua e mapa, seguidos por uma seção-epílogo à guisa de bonus track em que o corpo passa a ser a morte, habitada por um poema breve de apenas dois versos (“Voltei pra casa/ estava vazia”) — um certo percurso que vai da dor das memórias de infância (“esse cabelo aqui você gosta? O bafo da bebida me aquecia o rosto/ gosto sim, mãezinha. Então passou a tesoura (…)”, Leite de cabra) ao desprezo pelo mundo gentrificado de uma certa classe média (de escritores?): “não, não faço pilates, não tenho todos os dentes,/ não como orgânicos nem faço yoga,/ não ando a gourmetizar poemas/ com óleos essenciais”, Sobre as minhas muletinhas), mas acerta mesmo é na metapoesia militante que tem como principal alvo uma certa voz crítica (literária) masculina que assombra diversos poemas: “ele me disse para tirar a puta do poema/ a puta palavra, palavra puta putana putinhos/ putos putas a palavra puta, puta poema/ eu engoli a puta com o poema”, Direito de resposta.

Essa voz masculina e/ou paternal contra a qual Porto investe como Antígona contra Creonte ou como Prometeu contra Zeus (“não me oculte o fogo, Senhor/ meu Lord, meu mito, minha estampa de escrava de deuses”, Na poça) é também talvez a voz da crítica literária inconveniente (cito novamente Direito de resposta, ou, especialmente, O crítico: “ele me diz pra ter cuidado/ cuidado com os poemas (…) corte os pulsos do poema, corte a glande do poema,/ corte o baço, o rim que sobra, essa margem, uma ponta”) ou talvez do horizonte de expectativas banal e trivial de um certo público que espere do(a)s poetas que escrevam versos para serem transcritos para “dar de presente à/ao namorada/o” — como Luís Pimentel diz no prefácio que não são os poemas de Patricia Porto (ainda que se constate com facilidade que a poesia contemporânea definitivamente não foi feita pra escrever em papéis de carta estampados — sorte nossa).

No entanto, o enigma das múltiplas referências poéticas de Porto não está ali para ser desvendado. A onipresença de referências gregas (algumas veladas, como Orfeu, Prometeu, Ariadne — possíveis candidatos mais fortes ao título de alter ego pré-antigônico dessa voz que se apresenta no livro —, outras evidentes, como Medusa, Dioniso, Tirésias, Antígona, esta última o autoproclamado alter ego de múltiplas cabeças da voz poética — desde a capa, com a pintura de De Chirico representando duas figuras com cabeças sem face, passando pelo singular do título e pelos plurais em Cabeças de Antígona e Cores de Antígona, parece esconder o verdadeiro mosaico de imagens e pistas para o verdadeiro quebra-cabeças do livro: a casa, o quartinho sem janelas, a cela, o passado, o corpo, a memória, a dor.

Dor profunda
E é esse o ponto alto de todo o livro: a dor profunda resultante do encanto alucinatório do ritmo poético de Patricia Porto. Como uma espécie de catarse aristotélica disfarçada de poesia confessional, as imagens reiteradas provocam pathé quase trágicas, mas, como se espera de bons poetas (inclusive dos trágicos), sem pieguice. E com muita arte. Por trás da simulada simplicidade dos versos longos, encontram-se cadências rítmicas encantatórias, imagens sonoras inusitadas e algumas sequências bastante efetivas de aliterações e assonâncias virtuosísticas. Um bom exemplo: em Cores de Antígona, “sútil tear” é aposto de “fino instrumento”, responsável por tecer “palavras (…) que escrevem da morte/ a coragem, os devires”. À primeira vista, “sútil” parece uma simples alternância tônica do adjetivo “sutil”, que (des)pista o leitor a crer num simples erro ortográfico ou em algum uso marginal do adjetivo. Mas essa hipótese convive homonimicamente com sua versão natural, oxítona, bem como com a derivação de outro adjetivo, ligado a “consútil”, “ligado à costura”, tecendo o verso em uma cadência coriâmbica de grande prazer visual/auditivo em um verso majoritariamente datílico: “palavras tecidas no fino instrumento, sútil tear”.

Há muitas passagens que ilustram a destreza poético-musical de Porto, em que dançam vogais, consoantes e prosódias fluidas. Em poucos casos, alguns jogos de palavras destoam pelo excesso, como em Poemas fofos, em que a “escreva sobre a pílula/ a papoula”, segue-se “escreva sobre as fadinhas fodinhas/ (…)/ sobre o natureba, o natura bio degradável”, ou em Fotograma, em que lemos “Laika, vira-lata via láctea”. Em outros casos ainda menos numerosos, há uma certa sobra de versos que prejudica o poder de síntese, como em Lavanda, em que o último verso da estrofe empalidece a potência imagética do primeiro, que já o contém: “o cheiro crespo tem lavanda/ minha roupa crespa/ meu teto crespo/ meu cabelo crespo tem essa lavanda” (p. 135).

As citações seguintes compõem uma pequena amostra da inventividade rítmica da poeta. Penso aqui em ritmo num sentido mais amplo, o de Meschonnic, algo como a organização do sentido e da subjetividade no discurso: “Dá cá a tua mão, pequena!/ E apanha.// Dá cá a tua mão pequena!/ Dá cá a tua voz pequena!” (A menina de cinco olhos); “escavo com a unha a derme da escrita/ vou de encontro ao mar” (La mer); “Jornal de embrulhar notícias dos bairros que fervem de asfalto” (Roda gigante); “abrindo uma arma, a máquina de cavar os pelos/ numa nuca, uma a uma: (…) brincar de sangrar a amiguinha/ anjo devoto de branco/ lábios de dizer blá blá blá” (A outra); “a viagem para dentro/ — o oco/ feito um tiro no peito/ o soco no escuro” (Medusa); “não ameace lamber o lume do abismo” (Uma língua).

Cabeça de Antígona
Patricia Porto
Reformatório
152 págs.
Patricia Porto
Nascida em São Luís (MA), com doutorado em educação pela UFF (2009), é autora dos livros de poesia Sobre pétalas e preces (2014) e Diários de viagem para espantalhos e andarilhos (2015). Também integra o coletivo Mulherio das Letras.
Rodrigo Tadeu Gonçalves

É poeta e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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