Há uma brincadeira correndo pelo Facebook que é mais ou menos assim: num retângulo preto, aparece a palavra “sexo” seguida de uma vírgula, algumas linhas em branco e o esclarecimento de que pouco importa o que possa vir escrito na sequência, pois nossa atenção já estará irremediavelmente fisgada pela palavra inicial. Não há nada na vida mais natural do que o sexo, e mesmo assim basta o tema ser anunciado para despertar de pronto a curiosidade. Portanto, nada mais natural que um livro cujo mote seja o sexo já nasça com alguma vantagem sobre os demais, num espaço cada vez mais apertado para receber a carga crescente de novos lançamentos. Acrescente-se a esse livro algumas peculiaridades que o tornam ainda mais interessante — nele o sexo deixa o território daquilo que se considera normal para entrar noutro bem mais difícil e rico do ponto de vista literário, o dos desvios e anomalias; a obra é assinada por um estreante que tem na biografia um diploma de psicólogo, a fama de leitor voraz e um blog dedicado à literatura; a publicação por uma grande editora faz parte de um prêmio literário, chancela de qualidade à qual pouquíssimas obras têm acesso, ainda mais em se tratando de uma coletânea de contos de autor desconhecido — e pronto: ele se oferece ao leitor de uma forma quase irresistível.
Seria possível discorrer generosamente sobre cada um desses e de vários outros aspectos de Parafilias, de Alexandre Marques Rodrigues, vencedor do Prêmio SESC de Literatura deste ano na categoria Conto, e o assunto não se esgotaria numa simples resenha. E talvez resida aí a maior virtude de uma obra, a de não se esgotar em si mesma, mas continuar oferecendo múltiplas possibilidades de abordagem e discussão para além da última página.
Os prêmios literários, como de resto quaisquer concursos ou festivais de arte, visam essencialmente a dois tipos de reconhecimento: excelência e novidade. À parte toda a subjetividade envolvida nas premiações, ambos são atributos difíceis de ser alcançados num mesmo trabalho. Na falta dessa mescla ideal, é comum a escolha às vezes tender a privilegiar um, às vezes, outro. Não é o caso de Parafilias, um casamento de excelência e novidade que raramente se vê premiado porque raras vezes acontece.
Desvio sexual
No início do livro, vem transcrita a definição dicionarizada da palavra que lhe dá título: o leitor fica de pronto sabendo que “parafilia” é um substantivo feminino, de origem grega, que quer dizer “além ou fora do amor; perversão, desvio sexual”. Esses conceitos são de tal forma amplos que permitem abrigar qualquer coisa que fuja do convencional. E como o convencional nem sempre (ou quase nunca) é sinônimo de natural, principalmente quando se trata de algo tão íntimo e pessoal quanto o sexo, o que alguém considere desvio ou perversão pode noutra visão ser considerado perfeitamente normal. Mas aqui é preciso ter cuidado: assim como a palavra “sexo” exerce esse poder de ímã sobre nossa curiosidade, “perversão” e “desvio sexual” também atraem para si toda a atenção, obscurecendo o que mais esteja ao redor. O conceito de parafilia mais adequado ao contexto do livro é justamente o primeiro da lista, “além ou fora do amor”, que acaba sufocado pelo peso dos demais.
Tome-se o primeiro dos 24 contos, Livros, em que a personagem se excita pedindo que o amante leia para ela os livros do marido. Ou o segundo, Palavras, o caso do escritor que tenta se livrar de um bloqueio criativo elaborando listas de palavras aleatórias, enquanto é obrigado a amar a mulher que o sustenta. Ou o terceiro, Irreversíveis, um belo diálogo com o magistral e crudelíssimo filme Irreversível, de Gaspar Noé, narrado na mesma cronologia invertida e que também traz uma história cuja motivação é explicada pelo próprio título. Avançando um pouco mais, chega-se a Esboços, um dos melhores da coletânea. Nele, o casal de irmãos adolescentes entra sem perceber num perigoso jogo erótico quando ela quer mais uma vez retratá-lo, ele constrangido de posar nu, ela seduzindo-o com sua erudição e buscando desarmar os pudores dele com a história do pintor austríaco Schiele, que também retratou a irmã nua. Esboços serve ainda de ilustração à bem-sucedida estratégia de Rodrigues de sugerir uma coisa para contar outra, um requinte que só a melhor literatura consegue produzir.
Como se pode perceber, o quanto que há de perversão nas histórias até aqui resumidas é algo questionável. E nas demais ela não irá muito além disso. As várias possibilidades de envolvimento sexual — homem com mulher, homem com homem, mulher com mulher, mulher com transexual — acabam todas no mesmo ponto: a falta do amor para lhes dar um sentido e resgatar seus protagonistas de uma “solidão urbana”, como bem observa Heitor Ferraz Mello no texto da contracapa. Eis aí a verdadeira patologia comum a todos os personagens e a partir da qual se pode vislumbrar uma unidade temática.
Outro conto emblemático é Quartos, em que um camareiro de motel com diploma universitário e fluente no idioma russo vence os intervalos de seu humilhante serviço de limpar a imundície dos outros lendo Tchekhov, Gorki e Dostoievski. A situação, tragicômica por sua bizarrice, vai se adensando à medida que o leitor assiste ao personagem tornar-se uma espécie de voyeur involuntário de toda sorte de desvio, até acabar ele próprio protagonizando um episódio de indiscutível perversão sexual, num desfecho tão cruel que é quase um exercício de erotismo às avessas. Quartos é um exemplo perfeito de como é possível inovar e ao mesmo tempo manter absoluta fidelidade à mais pura tradição do gênero: ele traz uma história bem estruturada e coerente, a despeito de sua esquisitice; nada está ali de graça, mas tudo, até o menor detalhe, se inter-relaciona de forma orgânica e converge para o final; este remete ao começo, dando a ideia de circularidade; o desfecho é aquele soco na boca do estômago de que nos fala Cortázar e já tantas vezes referido; é surpreendente, mas não poderia ser nenhum outro. Dito noutras palavras, uma aula de como se escrever um bom conto.
A orelha vale-se da mesma concisão dos contos para apresentar a obra por outro viés, o do erotismo, e o belo texto de Ronaldo Bressane é mais um convite à leitura. Bressane vê nas narrativas de Parafilias um traço em comum com outras de Hilda Hilst, Sérgio Sant’Anna, Reinaldo Moraes e Rubem Fonseca, uma respeitável galeria: “Os encontros sexuais antecedem ou explicitam um epifania na literatura, na pintura, na música, na filosofia”. Contudo, a frase de Bressane que poderia ter servido de epígrafe ao livro vem um pouco antes e vai certeira ao ponto: “O erotismo é um modo de investigar o mundo”.
Com o texto elegante e bem construído, mas sem se constranger, quando necessário, de baixar o registro até o francamente chulo, Alexandre Marques Rodrigues seduz o leitor sugerindo tudo o que ele quer ver, excita-o com histórias picantes, mostra que a perversão é um conceito elástico e relativo e, no fim, deixa-o atônito ante a profunda e inescapável solidão humana de seus personagens.
Como num melancólico final de uma grande festa.