Sexo, mentiras e alucinação em Copacabana

Em seu romance de estréia, João Paulo Cuenca oferta as peças de um quebra-cabeça, mas não as monta
João Paulo Cuenca: opção pela realismo fragmentado
01/12/2003

Corpo presente, de João Paulo Cuenca, é um romance sem protagonistas. Há Carmen e há Alberto. Mas como se vê nas 142 páginas do livro de estréia deste carioca de 24 anos, todos os personagens podem ser Carmen e Alberto. Como se todos nós pudéssemos encarnar Carmen e Alberto. Eu, você e o próprio Cuenca.

Talvez esse esclarecimento seja vital para se falar sobre Corpo presente. A crise de identidades, ou o jogo de identidades, como sugere a orelha do livro, é simplificada nesses dois nomes, Alberto e Carmen, que se transfiguram entre mães, mulheres, putas, travestis, homens, homossexuais e escritores, todos unidos por traços precários de personalidade corroídas por um universo nefasto, putrefato e, de certo modo, atraente.

Esse cenário é Copacabana, no Rio de Janeiro. Lugar outrora símbolo do que havia de refinado no Brasil, hoje bairro que exibe como nenhum outro a decadência sofrida pela cidade. Se há um microcosmo do que seja a sociedade carioca de hoje, esse lugar é Copacabana.

Cuenca viveu nos últimos anos em Copacabana. Mais exatamente, nas proximidades da praça do Lido. Conta que se divertia nas relações com a vizinhança, formada por trabalhadores, pivetes, travestis, gringos, velhos e aviões do tráfico entre outras figuras. Além, é claro, de escritores e outras formas de artistas, como ele próprio. Por isso, provavelmente, que seu livro é tão referenciado com a praia carioca. Mas não é necessário conhecer a vida de Copacabana para se apreciar Corpo presente. É apenas um cenário. Um cenário que ferve sob o sol escaldante do Rio e entre as coxas desses seres tão sexualizados que somos todos nós hoje.

O primeiro capítulo — ou, mais corretamente, fragmento de texto — do livro é dedicado a Carmen. Ela é uma mulher, mãe neófita, que sofre com as dificuldades de criação do primeiro filho. Sofre, também, com a ausência do marido. Amamentando, pensa em um colega de trabalho. Sem cerimônias, masturba-se com o bebê no colo. (A partir desse primeiro fragmento, intitulado Carmen, os demais capítulos serão encimados por números primos — exceto por um trecho intermediário, chamado Alberto e Carmen, e pelo texto final, Alberto.)

A ação que se desenvolve no fragmento inicial da obra é uma bela apresentação do que vai encontrar o leitor nas páginas a seguir. Sexo e desengano, não necessariamente nessa ordem, que são como lampejos de luz derradeiros de vidas que insistem em não definhar. Em Corpo presente, todas as figuras estão destinadas ao fracasso e à morte. Não há benevolência, não há deus ex machina que os salve. E eles tampouco clamam por salvamento. Estão ali, vivendo à sua moda, mentindo e se alucinando (à base de drogas ou por conta própria) e esperando pelo fim de tudo — um inundamento, um suicídio, um assassinato ou um jorro de água em seus peitos.

O sexo, apesar de ser apresentado em diversas modalidades, não é necessariamente chocante ao leitor letrado. É um sexo exagerado, sem pudores ou temores, em que o gozo não é necessariamente prazeroso, mas símbolo de um momento em que se recusa o terror de permanecer vivo. Em uma das mais marcantes passagens do livro, o narrador e Alberto (possivelmente seu alter ego), sobem o Morro do Pavão: “Vamos pro baile. Mas tem que ser o baile raiz. Tem que ser o baile da comunidade, essa popularização inversa está manchando o movimento. A pior coisa que pode acontecer com qualquer estética é ser adotada pela classe média. Mas não é isso que a gente acaba querendo mesmo? (…) Hoje eu sou capaz de cortar o asfalto com as unhas e comer todas as popozudas do ponto de ônibus. Hoje eu assôo meu cérebro e engatinho numa esquina suja de Copacabana”.

Segue-se a transcrição da fala de um MC do funk, logo mais, o narrador chega ao baile: “Nunca senti tanto calor, Alberto. É um calor visual e sonoro, é calor por todos os poros e eu suo em bicas. As calças da gang molhadas, aquelas neguinhas gostosas que eu nunca comi, esses putos podem tirar onda com a minha cara. Elas desfilam de top, decotadas, as cachorras, as bandidas, as preparadas. Rebolam. Ali pode tudo e eu vejo os crioulos lambendo as meninas, Alberto. Na escada, na pista, na cabine de som. É bonito de ver”. Pouco tempo depois, o narrador encontra uma Carmen, bandida do baile: “Carmen me puxa e subimos numa laje. Popozudas de todas as formas e tamanhos fodendo e chupando caralhos negros e cabeçudos. Uma suruba estelar, sinfonia de paus e bocetas. Alberto, isso aqui manda essa geração de angustiados pra puta que os pariu. As meninas, adolescentes de calcinha vermelha, trocam de parceiro rapidinho. A gente não existe perto desses caras, Alberto. Eles são heróis — eles são o mito”.

Note-se: “A pior coisa que pode acontecer com qualquer estética é ser adotada pela classe média” e “isso aqui manda essa geração de angustiados pra puta que os pariu”. É a descrição do fenômeno da absorção da cultura marginal pela “sociedade organizada” ao lado de uma espécie de crítica ao pensamento jovem da geração do próprio autor. Enquanto os cabeças do asfalto se esvaem na melancolia, as cabeças do morro vão direto ao ponto, quebrando, na prática, todo o comportamento moral vigente.

Fragmentação
A forma fragmentada como Cuenca escreveu seu livro não é, necessariamente, proposital. O autor se deixou levar pela fluência que o formato ao qual optou exigia. Há fragmentos que se completam. Outros estão perdidos, não têm conexão com os demais. É, aparentemente, um reflexo literário do mundo em que vive o autor. Conectado à internet, ouvindo música e exposto à televisão, ele tenta escrever. Tenta, consegue. O resultado é esse. Uma narrativa entrecortada, meio sem pé nem cabeça, mas com “sustança” o suficiente para dar as bases do que é o universo do autor.

J. P. Cuenca é um dos nomes da chamada “nova geração” da literatura brasileira. Muito já se falou sobre isso, mas digamos que a tal geração seja somente o desígnio de um grupo de escritores que passou a escrever (e, principalmente, publicar) recentemente, no último par de anos.

Desses, Cuenca é o que parece menos otimista de todos. É, também, um dos textos mais ricos entre eles. Fala-se de fragmentação, mas a riqueza de seu vocabulário e sua capacidade descritiva é que fazem seu diferencial. Corpo presente, título que sugere de antemão a louvação a alguém morto, é, antes disso, o trabalho da obstinação e liberdade oferecidas pelo autor a si mesmo. Ele já disse (e também não é nenhuma novidade), espera que o resultado final do livro seja construído em parceria com o leitor. Para isso, oferece dezenas de peças, sejam elas divisíveis somente por um e si mesmas ou não. A conseqüência, cada um que suporte da melhor maneira.

Corpo presente
João Paulo Cuenca
Planeta
142 págs.
Ricardo Sabbag
Rascunho