Respeitada personalidade da vida cultural francesa, mulher ainda por cima, resolve contar tudo, mas tudo mesmo, sobre a sua movimentada vida sexual; já teríamos aí material suficiente para um bom escândalo. Mas se a vida sexual dessa pessoa foge dos padrões habituais do que se considera a normalidade, o impacto ultrapassa o de uma pequena bomba atômica moral para se constituir num crisol de pura perplexidade.
O escândalo está na base das vendas — e do impacto — de A vida sexual de Catherine M. E o nome Catherine Millet na capa não é nenhum pseudônimo, trata-se de conhecida crítica e ensaísta de artes plásticas, tendo sido inclusive a responsável pelo pavilhão da França na última Bienal de São Paulo.
Meu exemplar foi comprado no aeroporto de Paris, minutos antes de retornar ao Rio. O livro chamara minha atenção durante incursões a livrarias da Rive Gauche, mas no aeroporto eu tinha a justificativa perfeita para a sua compra, “a queima dos últimos francos sobrando no bolso”, quando na verdade o impulso que me movia era o mesmo que levara mais de 300 mil franceses a adquiri-lo (agora no Brasil, em lançamento da Ediouro, o livro galga postos na relação dos mais vendidos): o interesse por um assunto pelo qual a humanidade parece não se cansar. Por prudência, não iniciei sua leitura na viagem: um Boeing, salvo juízo mais abalizado, não é o melhor lugar do mundo para divagações eróticas.
A leitura de CM suscita de cara duas questões: 1) é pura memória ou também um exercício ficcional?; 2) trata-se de pornografia?
Quanto à primeira questão, a edição da Seuil é, talvez propositadamente, ambígua. O livro saiu na coleção Fiction & Cie, sob a também ambígua classificação de “récit”, cuja melhor tradução em português é “narrativa”. Não se fala em memórias ou biografia, tampouco em romance; mas narrativa é a descrição ou exposição de qualquer acontecimento, real ou imaginário. A questão fica em aberto. CM em entrevistas jura que nada inventa, é tudo verdade. E é essa a sensação que a leitura passa. Se houver ficção, é da boa.
Mas no que consiste a excentricidade sexual dessa personagem tão viva, Catherine M? Ela vai além do mero furor uterino (isso existe mesmo?). A troca incessante de parceiro não é coisa tão incomum assim. O ponto crucial (e não o G, tão na moda) é que CM (autora ou personagem, não importa) é adepta do sexo grupal. Mas isso ainda é pouco (sim, ainda não terminou), CM vai mais longe, ela não quer senão ser estuprada até a exaustão. Estupro consensual, se me permitem o paradoxo. Depois de perder a virgindade aos 18 anos com um namoradinho, numa barraca de praia, a moça descobre sua vocação: atender a multidões masculinas, sem qualquer tipo de discriminação. Seja em clubes de Paris especializados em surubas, seja em parques públicos, onde matilhas de homens a seguem à noite como cães esfaimados atrás de uma cadela no cio. Sucedem-se até o fastio as passagens em que CM deitada nua sobre uma mesa ou na traseira de uma caminhonete serve de pasto à lubricidade alheia durante horas, imersa ela não no prazer mas numa espécie de torpor ou embriaguez que a faz se esquecer de si mesma.
Mais do que a crueza das cenas de sexo, o que talvez seja mais suscetível de chocar os leitores — e, sobretudo, as leitoras — é a deliberada negação da personalização ou humanização da relação sexual, em favor da pura animalidade. Numa época em que as mulheres lutam para rejeitar a condição milenar de meros objetos, a aspiração de CM não é senão a de converter-se no objeto sexual puro e total. Entrega-se a um homem por quem não sente a menor atração por achar justa a alegação de que, se todos a possuem, por que só ele não? Sua predileção é ser sodomizada. As preliminares a aborrecem e nos clubes onde o costume é jantar e conversar, antes de se passar às vias de fato, essa perda de tempo a irrita: quer tirar a roupa sem mais delongas, deitar e se sentir rodeada por homens. Aliás, por homens não: por sombras que se deslocam em volta dela e cujos comentários, embora cheguem distantes, inflam seu ego narcisista. Não existe relação. Ela interage não com parceiros, apenas com pênis rijos, mais de um ao mesmo tempo e sem a menor idéia de a quem pertencem.
Chega-se então à segunda questão: trata-se de obra pornográfica? E aí a tentação é responder que será pornográfica na mesma medida em que o filme O império dos sentidos, de Nagisa Oshima, também o seja. Em ambos os casos, parece-me, a crueza da descrição é ultrapassada por algo maior — a sinceridade absoluta. Enquanto a pornografia visa tão somente a mera excitação dos sentidos, esgotando-se nesse propósito, tanto o filme quanto o livro parecem projetar uma busca muito mais ampla — o desnudamento dos recantos mais íntimos e secretos do ser — com uma candura e autodoação que não parecem conhecer limites e que em alguns momentos chegam a ser comoventes, possibilitando-nos reconhecer um campo comum de identidade, a da pura animalidade de que também somos feitos e que não queremos admitir muitas vezes nem para nós mesmos. Numa passagem, CM enumera seus sonhos masturbatórios, que incluem ser avassalada por um punhado de suados peões de obra, noutra as características físicas de dois cozinheiros negros que recolhe na rua, e perguntamos, quase estarrecidos: mas como essa mulher conhecida tem coragem de se expor tanto, em atos e pensamentos? Examinei a edição brasileira: a tradutora em alguns momentos parece ter suavizado uma ou outra expressão, usa a inacreditável palavra rabo, quando CM vai, digamos, direta ao ponto: é, sexo incomoda, queima, e é difícil ir até o fundo das coisas, até o osso.. É como se CM, revestida da absurda invulnerabilidade dos grandes libertinos, dissesse: vocês e seus códigos morais e de boas maneiras são todos hipócritas; eu tudo ouso, nada temo e nada pode me ferir.
A terceira, provavelmente irrespondível, questão seria saber em que medida a personalidade de CM é normal ou patológica. Seria o mesmo que tentar avaliar em que momento uma mordidinha amorosa começa a se converter num ato doentio de sadismo; tudo se resume a uma questão de grau. Mas quem o determina? De qualquer modo, pelo menos uma faceta libertária a autora, banhada em doses cavalares numa calda de narcisismo e masoquismo enrustido, parece proporcionar: a desmistificação da idéia, tão vendida pelo status quo, de que a realização sexual é indissociável do sentimento do amor (e hoje CM está casada), podendo até ambos os termos ser usados como sinônimos. Já vi apresentadores de TV, ao falar da cópula de animais, dizer que eles estavam “fazendo amor.” No filme Acossado, de Godard, o escritor, perguntado se erotismo é amor, responde: “o erotismo é uma forma de amor, assim como o amor é uma forma de erotismo.” Quando homens e mulheres tiverem isso mais claro, talvez as relações se tornem mais definidas e honestas e, quem sabe, mais felizes.