Ser ou fazer: eis a questão

"Oblómov", de Ivan Gontcharóv, é um romance de qualidade equivalente ao padrão de Flaubert, Dickens, Tolstói ou Dostoiévski
Ivan Gontcharóv , autor de “Oblómov”
01/02/2013

Um livro se torna um clássico quando atinge, de modo único, algo de imutável que reside na alma humana. Oblómov ascendeu a esse panteão, muito embora tenha sido a única obra literária de Ivan Gontcharóv que alcançou o estrelato. No romance, publicado em 1859, Gontcharóv fala de um homem da nobreza russa, rico, bem versado nos estudos, mas incapaz de calçar suas próprias meias e que, testado ao extremo por seu amigo e sua noiva, ainda assim opta por uma vida limitada à observação das horas e dos dias. Sua paixão era o sofá, o roupão, as refeições e a contemplação do tempo.

A versão brasileira da obra vem numa edição caprichada em forma e conteúdo da Cosac Naify: tradução e apresentação de Rubens Figueiredo, posfácio de Renato Poggioli, papel-bíblia com separadores decorados e a capa dura revestida em tecido, um livro que remete ao esmero das edições mais antigas.

O romance divide-se, basicamente, em quatro partes. A primeira dedica-se à descrição detalhada de alguns dias de Iliá Ilitch Oblomóv e seu divertido e rabugento criado Zakhar ante a chegada de más notícias de sua aldeia Oblómovka, a constatação da diminuição de suas rendas e a iminência de sua mudança. Apreciar o trabalho de Gontcharóv vale a pena: na dificuldade do protagonista de escrever uma carta ou de pôr-se a resolver qualquer questão, por mínima que seja, encontramos a descrição exata da preguiça, do desânimo, da negligência e do medo — nada que não escutemos de bisavós e que não exista muito vivo ainda nos dias de hoje.

No desenrolar de sua narrativa, Gontcharóv despeja em Oblómov, em trechos bem-humorados, a sátira de uma nobreza russa — fútil e incapaz — em declínio perante as novas habilidades que os séculos 19 e 20 demandariam. No entanto, basta uma reflexão mais profunda para indagarmos se o ideal de vida como “realizar” é realmente maior do que o ideal de vida como “ser”, ou se trata-se apenas de uma exigência dos novos tempos.

Água fria
O ápice do primeiro ato é a descrição sobre o ideal de vida de Oblómov (o tal “oblomovismo”), narrado no capítulo “O sonho de Oblómov”, retirado pelo autor de um conto escrito em 1849 e que, provavelmente, fermentou o suficiente para se transformar em sua obra-prima.

No segundo momento, Oblómov encontra seu amigo Andrei Ivánovitch Stolz, amigo de infância de origem alemã. Ele o impele à ação e, nas férias de verão, apresenta-lhe Olga Ilínskaia Serguéievna. Esta, uma aristocrata, deseja fazer de Oblómov seu herói, apaixona-se por sua ternura e o exorta a se tornar um homem pronto para a batalha da vida. Encantando-se ao ver os progressos do homem apaixonado, Olga se precipita. Ele, por sua vez, acredita no futuro de plenitude e felicidade criado por ambos, faz planos e enamora-se. A preguiça, porém, é maior, e consome as expectativas de Olga e as esperanças de Oblómov em sua própria transmutação e no futuro do casal.

Ao chegar à terceira e quarta partes, porém, Gontcharóv se perde um pouco em seus (ótimos) personagens e no desencadear da história. Após desatar o compromisso com Olga, Oblómov se torna vítima de golpistas russos, seus conhecidos. Na vida real, para um homem que não possui habilidades práticas, isso equivaleria à sua derrocada. Mas Gontcharóv, ao ver aonde levou seu protagonista, considerando suas inúmeras qualidades e bom coração, redime-o de seus defeitos, não tem coragem de finalizar a tragédia.

Gontcharóv deixa-se vitimar por seu próprio enredo e usa a amizade e praticidade de Stolz para salvar o personagem. A sensação, no entanto, é de decepção. Seria como, por exemplo, Shakespeare tornar lúcido seu Hamlet, ou fazer com que Otelo reatasse com sua amada, terminando a tragédia de modo delicado e bom, todos satisfeitos. Certamente, na Velha Rússia, o desfecho escolhido pelo autor seria impossível, e a história toda cai por terra. Gontchárov arremata com um final previsível — o que, para um romance deste porte, não deixa de ser um balde de água fria.

Há, porém, uma reflexão importante que pode salvar a previsibilidade do romance: Oblómov não deixa de ser herói, pois realiza o seu ideal de vida, enquanto Stolz e Olga descobrem que a vida, compreendida por ambos como uma sucessão de “realizações”, descreve sua curva ascendente na juventude, mas finaliza em uma rota descendente. Por tal motivo, Oblómov termina seus dias em harmonia, enquanto os dias de Stolz e Olga são temperados por uma certa amargura.

Finalmente, Gontchárov esmiuça seus outros bons personagens: sem mais nem menos, o autor passa longas páginas a descrever a tristeza de Olga e sua lenta recuperação, com a ajuda do alemão Stolz. Também passa tempo demais para explicar como um homem do calibre de Stolz aceita ocupar a segunda opção na vida de Olga, desafiando o ideal romântico. E se empenha mais outro tanto explicando como os três continuaram amigos depois daquele triângulo amoroso, numa sociedade tradicionalista como a da Rússia no século 19.

Vê-se claramente que o próprio autor se apaixonou por Oblómov (uma autobiografia?) e tem misericórdia de seu protagonista, tanto nas questões práticas como na razão moral. Stolz livra Oblómov dos malfeitores, assume a condução dos negócios de Oblómovka e permite que o amigo preguiçoso tenha um fim bem próximo do sonhado: entre o tiquetaquear do relógio, observando a algazarra das crianças e o trabalho criterioso de Agáfia Matviéievna Pchenítsina, uma conterrânea que se torna sua esposa e que contentava-se em vê-lo fazendo o que mais amava: dormir. Por fim, Stolz e Olga cuidarão das heranças de Oblómov — seu filho Andrei, seu criado Zakhar e sua aldeia, Oblómovka.

Em uma narrativa muito rica em citações literárias e ambientada nas melhores locações da Rússia e da Europa — apesar do compreensível deslize do autor — Oblómov é um romance de qualidade equivalente ao padrão europeu, digno de Flaubert, Dickens, Tolstói ou Dostoiévski, retratando de modo ímpar a quintessência do estilo russo e o fim de uma era na aristocracia rural e servocrata.

A linguagem de Gontcharóv, seus diálogos e algumas passagens preciosas tornam o romance estupendo, inigualável.

Tudo isso rendeu ao autor dois feitos inéditos: criou-se do romance a palavra russa “oblomovismo”, que caracterizava um modo de vida inerte e apático tratado no ensaio O que é o oblomovismo?, de Dobroliúbov, gerando intensas discussões políticas; e uma narrativa que até os dias atuais mantém-se jovem, rica, intensa e encantadora.

Oblómov
Ivan Gontcharóv
Trad.: Rubens Figueiredo
Cosac Naify
736 págs.
Ivan Gontcharóv
Nasceu em Simbirsk, na Rússia. Estudou na Universidade de Moscou e trabalhou no funcionalismo público, aposentando-se com trinta anos de serviço. Iniciou no Ministério da Economia e, posteriormente, exerceu cargo de censor por dez anos no Ministério da Educação. Permaneceu solteiro e publicou dois romances além de Oblómov — Uma história comum (1847) e O precipício (1869) —, muito embora não tenham tido a mesma sorte de crítica e público. Uma viagem pelo mar ao Japão e por terra de volta à Rússia também lhe rendeu a reunião de vários escritos, posteriormente reunidos em A fragata Pallas (1858), na qual descreve uma viagem sob o ponto de vista oblomoviano.
Paula Cajaty

É poeta. Autora de Afrodite in verso.

Rascunho