Aos que insistem em situar o poético como o lugar do idílico, do fora-de-órbita, da fuga a um planeta outro em que não vivemos, o novo livro de Eucanaã Ferraz, Cinemateca, adverte: “O poema ensina a estar de pé./ Fincado no chão, na rua, o verso/ não voa, não paira, não levita.// Mão que escreve não sonha/ (em verdade, mal pode dormir à luz/ das coisas de que se ocupa)”. Inscrevendo-se de olhos bem abertos dentro dos de um leitor boquiaberto, toca nossas retinas uma poética predominantemente plástica, visual e onde até o mais etéreo recebe sua materialidade, para que, à superfície, os mistérios – à semelhança drummondiana de um claro enigma – abdiquem de toda abstração para alarmarem textura, temperatura, luz: “esvaziássemos a atmosfera,/ pescando-se no ar como num tanque,/ achar-se-iam milhões de seres inexplicáveis// e com eles muitas coisas se explicariam./ Quanto a mim, imagino que/ talvez pudesse vê-la, a poesia,/ naquele vazio, entre um verso e/// outro, naquela (nesta) rua cintilante,/ silenciosa, reta que vai dar fora da folha”.
Diante de uma palavra substantiva, clara, que “ouve com os olhos” e é capaz de afirmar, sem metafísica, que “Deus é o cubo/ de açúcar que se dissolve no leite”, nossas sobrancelhas se suspendem ao perceber que o poeta deglutiu bem as lições de um João Cabral, sem que isso queira significar qualquer reprodutibilidade do universo e estilo do pernambucano. As pálpebras arregalam “outro mundo, outra educação/ pela pedra”, na qual o eminente aprendiz, a abrir “tudo/ em grande angular”, freqüenta muitas escolas – da literatura (pintando o “guarda-chuva” de Bandeira, passeando por Weissmann com Freitas Filho, entre aquarelas de Dostoievski, Camus, Mallarmé, Herberto Helder, Eugénio de Andrade e “bibliófilos” de toda espécie) e da pintura (a escrever Matisse “com a mão, certa, obediente”, sem deixar de abrir estrofe para Mondrian, ou Breton).
O livro seria apenas e extraordinariamente esta aquarela verbal (de muito sol “azul” a avançar “pela boca”, sob um céu “branco” ou “verde-claro” entre “amarelos” e “vermelhos”) se não cantasse também o “só abrir-se/ do aberto: ritmo”, cujo “movimento sem fim” conduz os quadros pintados ao cinematógrafo. Tamanho dinamismo, alimentado pela respiração entrecortada das vírgulas, se alcança, sobretudo, mediante o emprego magistral do enjambement, que funciona como espécie de hiato entre os fotogramas e, portanto, uma abertura para que os “tetos” da casa poemática se abram (fazendo-os flertar, inclusive, com a dicção da prosa), de maneira que todos os versos pareçam “mover-se sobre salto”. Há momentos em que o enjambement costura-os não somente dentro de um mesmo poema: chega a propor a continuidade (ou descontinuidade) da versura também entre um poema e outro, ou entre uma seqüência de poema e outra, razão pela qual sempre se nos adianta uma dose de não-dito no adiamento recorrente do término daquilo que se tem a dizer.
Tal costura em moto-contínuo, “distinguindo a linha, o intervalo,/ o vão”, remete ao ofício criativo do montador de filmes, de quem Eucanaã Ferraz se sugere irmanado, de modo que a impecável fotografia deste cinema (roteirizado em três seqüências de luz, da mais intensa e diáfana, descendendo à melancólica e a finalizar com alguma próxima do fúnebre), manifeste peso ou leveza, frieza ou calor, mas, essencialmente, a sensação de que tudo está transitivamente vivo na página, a passear, sem sono, pela cidade, pela infância, pelo amor “caindo em admirações tamanhas/ que de lá não possa sair”.
O esforço do poeta em manter, graças à arte, a vida acesa com “sucessão de estrelas/ em pleno dia claro” transpira em todos nós que sabemos do trabalho de “desfotógrafo” com o qual o tempo nos mira, nos apaga e faz do esquecimento o desautor de cada uma de nossas claridades. Afinal, de cada escrito, diz a voz poética, não restará mais “que a folha livre/ de depois do livro, retrato/ em branco e branco”. Por isso (e para retomar os tão pertinentes títulos da obra coesa e madura de Eucanaã Ferraz), ensina-nos a estar de pé o desassombro deste “despenhadeiro prazer” de ler e escrever, no qual, dentro de uma cinemateca, o martelo (com ou sem dor) da poesia nos crava e finca no chão da (in)finita rua do mundo.