Para Gil Veloso, cuja ética é realmente necessária.
Sem dúvida, ele iria gostar que começássemos assim: com o Sol dançando em Virgem, Ascendente em Escorpião (embora tenha acreditado, durante anos, ser em Libra), Lua em Capricórnio, Vênus em Libra, a influência do Mercúrio Noturno (que muitos, hoje em dia, contestam ser, de fato, o Planeta Regente de Virgem), no dia 12 de setembro de 1948, em Santiago do Boqueirão (cidade gaúcha, próxima da Argentina, onde se fala português e espanhol, sem problemas), numa bela manhã de um quase final de inverno, início de Primavera, nasceu Caio Fernando Loureiro de Abreu, o primogênito de cinco filhos de seu Záel e dona Nair (ele, funcionário público, ela, professora).
Dizer que “ele gostaria” desse início, implica dizer que o nosso escritor em questão possuía a sábia postura de misturar elementos terrenos (muitos os chamam “reais”) com elementos cósmicos (mais conhecidos como “místicos”). E insistia tanto nessa perspectiva (ou ângulo, como queiram) que tal aspecto em sua obra chegou a ser chamado por um jornalista (em resenha feita por ocasião do lançamento das Cartas do autor) de “a parte besteirol de sua obra”. Afirmação oriunda de uma mente, no mínimo, descomprometida com a lógica (não vamos dizer “retardada”, é claro), mas que (como tudo na vida) pode ser aproveitada para pensarmos em como o biógrafo da emoção (título cunhado por Lygia Fagundes Telles) buscava ultrapassar os limites entre o visível e o invisível, o racional e o emocional, levando a escrita para uma zona muito mais etérea e mágica, mas nem por isso menos profunda, onde os rótulos e fronteiras perdiam completamente a possibilidade de existência, independentemente que tal escolha viesse, mais tarde, a sofrer esse tipo de “censura” crítica.
Não havia nada de “besteirol” na escrita de Caio Fernando Abreu, eis a verdade. O que há, em muitos momentos, é o resultado de anos de estudos empreendidos pelo autor sobre cabala, astrologia, meditação, budismo, entre outros conhecimentos que lhe interessavam e a que chamamos, atualmente, “esotéricos”. Esses estudos não só eram incorporados ao universo dramático de suas narrativas como também auxiliava a estruturação de certas histórias, tais como em Triângulo das águas e Onde andará Dulce Veiga? Um romance B. Porque nos acostumamos a opor tais conhecimentos ao científico (que também possui suas imprecisões, manipulações e momentos de pura fé, vide Foucault, em Arqueologia do saber), é uma questão de ordem histórica, político-cultural, não literária. Isto é, a presença dessa atmosfera mística nos textos de Caio Fernando Abreu não diminui a grandeza (desculpem a palavra tão clichê, mas não há outra melhor) de sua linguagem que (sim, vamos ter coragem de dizer) é arte. Uma das mais antigas: a arte da palavra. E isso é visível na escrita de Caio, quer estejamos, hoje, despreparados, confusos, politizados demais para usar tal conceito, quer estejamos sendo conservadores, reacionários, politizados. Entretanto, essa, digamos, “problemática” ou “crise” pela qual a arte passa, já há algum tempo (tempo demais, convenhamos) nem de longe fazia parte das preocupações do autor. Ao contrário, em muitas dedicatórias de seus contos e em entrevistas, Caio Fernando Abreu sempre foi muito claro: escrevia para iniciados, não para quaisquer olhos e ouvidos. E não se importava com reducionismos, não se importava com conceitos, com crises acadêmicas (muitos a chamam “intelectuais”), embora as conhecesse muito bem.
Caio foi muito jovem, com os pais, morar em Porto Alegre e publicou bem cedo, ainda adolescente, seu primeiro texto, O príncipe sapo, na Revista Cláudia. Por ser, como ele mesmo definiu, um escritor dado a guardar e organizar tudo, desde a menor anotação feita às pressas num guardanapo de bar, passando por inúmeros inícios de idéias abortadas, até as mais diferentes versões de uma mesma história, esse seu primeiro texto encontra-se disponível no último livro que lançou, Ovelhas negras (1995), e serve como curiosidade para os verdadeiros amantes da literatura, aqueles que sabem ser o percurso de qualquer grande escritor árduo, incerto, feito de pequenos achados que, mais tarde, com o chamado “suor incrustado”, se transformarão, indiscutivelmente, em marca pessoal ou estilo. Essa experienciação de todas as fases da escrita e a postura corajosa de não esconder elemento algum do leitor faz com que Caio Fernando Abreu seja uma ovelha realmente diferente da maioria. Não que fosse partidário da “escrita-compulsiva”, não era; não que deixasse de burilar pedaço por pedaço do seu texto antes de entregá-lo à mirada desconhecida, não deixava; o nosso autor em questão era, e muito, um obcecado pela perfeição, e isso é percebido nas suas frases redondas, nos seus parágrafos poéticos, que podem ser lidos em voz alta e onde não se encontra nenhum ruído, nenhuma cacofonia, nenhum estranho trocadilho, nenhuma palavra inadequada, nenhum trecho truncado ou ilógico. Todavia, esse percurso não era escondido, disfarçado do leitor, eis aí uma grande qualidade de Caio Fernando Abreu: a delicada franqueza com que jogava com o seu público. Tal jogo pode ser chamado também de dança — outra palavra e imagem significativas para se pensar o texto deste autor —, uma vez que a dança pressupõe uma relação de leveza e precisão, repetição e harmonia, técnica e improviso, num determinado tempo e espaço.
O diálogo com a dança, o teatro e a música são realmente visíveis na obra de Caio. Mas não somente na obra. A sua convivência com o mundo artístico começou cedo: em 1967, ingressou no curso de Letras, da UFRGS, depois no de Artes Dramáticas, abandonando-os, mais tarde, para exercer a profissão de jornalista — ele integrou a primeira equipe de Veja, tendo trabalhado, também, em revistas como Manchete, Pais & Filhos, Pop, A a Z, entre outras, e nos jornais Zero Hora e O Estado de S. Paulo. Foi ator e viajou por cidades pequenas com um grupo de teatro amador. Isso se reflete no amor e interesse enormes que possuía pelo teatro — segundo amigos, Caio tinha o costume de ir a todas as peças em cartaz, conhecesse ou não o elenco. Também conhecia os grandes teóricos da Teoria da Literatura e as contribuições que esses trouxeram aos estudos literários. E, vez-por-outra, dialogava com eles, em entrevistas, nos contos (ver Os sobreviventes, Sargento Garcia, contos de Morangos mofados ou o romance Onde andará Dulce Veiga?)
Sua carreira começa em 1970, quando lançou Inventário do irremediável, que havia recebido o Prêmio Fernando Chinaglia um ano antes. Marcado por histórias curtas, cujo fluxo de consciência das personagens é o que mais se destaca, o livro é recheado de referências que se traduzem em diálogos e retomadas tanto de temas quanto da técnica de construção de universos dramáticos de seus escritores preferidos — Clarice Lispector, Hilda Hilst, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Carlos Fuentes. Alguns contos de Inventário trazem ainda um tom de “inacabado”, resultando numa supremacia do apuro da linguagem em relação àquilo que é contado. O isolamento, a loucura, a incomunicabilidade, o exílio, a necessidade de amar e ser amado, a fragmentação do sujeito e o seu conflito com o meio são, desde o início, os temas mais caros da literatura de Caio Fernando Abreu. Tal universo, já apresentado desde esse primeiro livro, se amplia em Limite branco (romance, 1970), e o coloca como um dos escritores mais representativos da literatura contemporânea, devido à abordagem singular que seus textos apresentam sobre a condição limítrofe que marca o homem urbano dos dias atuais. O título de seu segundo livro já marca esse entre-lugar[1], bastante pós-moderno, que é dramatizado nas suas histórias urbanas: a não-procura de originalidade, a busca de um diálogo com a cultura pop e de massa, a problematização de identidades sexuais, do tema da loucura e da razão, entre outros.
Limite branco é, então, uma mistura de todos esses cacos: é a história do crescimento, dor, perdas, alegrias e busca de identidade de Maurício, um jovem que escreve um diário e tem, ao mesmo tempo, a sua vida (re)contada por um narrador em terceira pessoa, o que dá ao texto uma polifonia interessantíssima.
Sendo Caio Fernando Abreu um escritor emblemático de sua geração, ou seja, um dos escritores brasileiros nascidos no seio de uma revolução cultural e sexual, que traz tal revolução ou seus anseios, fantasmas e conflitos para as paisagens de suas narrativas, uma das questões que mais inquietam em seus textos é o tratamento dado por ele aos temas da loucura e homossexualidade. O aprofundamento desses temas vai aparecer nos seus livros seguintes: O ovo apunhalado (1975) e Pedras de Calcutá (1977). O primeiro, marcado por uma linguagem surrealista, com histórias que misturam realidade, onirismo e questões de ordem de toda uma geração que iniciou uma busca política pelo fim das restrições aos valores individuais e respeito às diferenças; o segundo, fruto de uma polarização entre indivíduo e coletividade, aprofunda uma atmosfera de rarefação, de desamparo e horror do sujeito perdido nos grandes centros urbanos.
Morangos mofados (1982), único best seller (percebam a ironia, please) do autor, embora seja considerado uma continuação do livro anterior, traz histórias que podem funcionar isoladamente, como contos, ou em conjunto, feito um romance. Foi adaptado para teatro e acabou virando um marco geracional, não só pelos temas, referências e toda a atmosfera da época ali capturados, mas também por questões de circulação de mercado: é símbolo das publicações da saudosa Brasiliense, que trouxe, na época, um novo frescor ao mercado editorial, traduzindo autores da chamada literatura beat, e publicando, nacionalmente, escritores que estavam à margem do processo editorial. A edição vermelho-azul, com latas de lixo cheias de morangos, uma figura humana de ponta-cabeça caindo entre os edifícios iluminados e as estrelas, de fato, estetiza um período (mais tarde, nos anos 90, o livro rescrito pelo autor e relançado pela Companhia das Letras, com outra capa), sem falar, é claro, na maturidade da linguagem conseguida em contos singulares como Os sobreviventes, Além do ponto, Luz e sombra, Caixinha de música e Pêra, uva ou maçã?.
Em Triângulo das águas (novela, 1983), Caio aprofunda as intenções simbólicas de Morangos mofados, colocando, em vez de muitas histórias, apenas três narrativas marcadas, segundo ele, pelo arquétipo do elemento Água — ao qual pertencem os signos de Câncer, Escorpião e Peixes. A intenção dele, não realizada, era construir um livro pra cada elemento, ou seja, teríamos depois o Triângulo do fogo (Áries, Leão e Sagitário), o Triângulo do ar (Gêmeos, Libra e Aquário) e o Triângulo da terra (Touro, Virgem e Capricórnio), fechando, assim, um ciclo de narrativas guiadas pelos arquétipos zodiacais. Embora não tenha conseguido realizar tal projeto, o autor construiu em Triângulo das águas três possibilidades de extravasamento e vivências de paixões, ora cercadas pelos próprios sujeitos, ora reprimidas pelas forças externas. Novamente, a morte, a loucura, o desamparo, a necessidade de amar, o isolamento, a dor de existir são os grandes temas materializados, entretanto, se destaca não apenas a necessidade de dominar os mecanismos de compreensão e expressão da emotividade (problema eterno dos signos do elemento Água), como também a sugestão implícita de uma saída através da leveza: a dança amorosa (coletiva, individual e a dois), que é buscada como única salvação pelos sujeitos.
Os dragões não conhecem o paraíso (contos, 1988), considerado por muitos a sua obra-prima, amplia a necessidade dessa dança que, quando empreendida pelo sujeito, possibilita-o a sair da condição de extremidade do pólo e fazer do conflito um jogo. Mas que não se pense que se trata de um livro positivo, longe disso, a metáfora do dragão engendra tragédia e riso, uma estetização da dor, como diria o próprio Caio. Ou seja, é, não mais apenas a procura desesperada de um pedaço de chão fértil, em meio ao concreto, para se plantar morangos frescos, mas a consciência de que o paraíso de que tanto precisamos, definitivamente, não existe, mas, porém, todavia, não nos matemos por isso: ele pode ser inventado por nós, dragões invisíveis, no dia-a-dia. Em 1989, o autor publicou, pela editora Globo, As frangas, história infantil dedicada a Clarice Lispector, ilustrada por Rui de Oliveira, que foi depois selecionada para o Programa Nacional Salas de Leitura do MEC.
Em 1992, Caio lançou Onde andará Dulce Veiga? Um romance B (romance), uma história meio policial, meio noir (palavras dele), de um jornalista que deseja descobrir o paradeiro de uma cantora de rádio desaparecida. Pela primeira vez, de maneira direta, aborda a aids, presente em três personagens do livro. O romance alterna linguagem jornalística com momentos de puro lirismo, formando um painel discursivo bastante curioso, e jogando com ação e reflexão, objetividade e subjetividade.
O último livro lançado por Caio foi Ovelhas negras (conto, 1995), reunião de histórias dispersas, censuradas por ele mesmo ou pela censura da época, um livro irregular, mas corajoso, que marca o retorno dele para Porto Alegre, a descoberta e sobrevivência à aids, a necessidade de revisar e revisitar a si mesmo. Em Ovelhas se destaca o conto Depois de agosto, também publicado na antologia de contos gays, O amor com olhos de Adeus (da extinta editora Transviatta), que propõe uma saída transcendental para a doença: uma fusão espiritual com o outro, através da telepatia, tornando o contato físico não apenas secundário como prescindível.
Caio morreu aos 47 anos, em decorrência da aids, no dia 25 de fevereiro de 1996, em Porto Alegre, cercado pela família e amigos, num dia chuvoso de domingo, quando a Lua estava saindo de Câncer. Após sua morte, foi lançado Estranhos estrangeiros, um projeto inacabado que, segundo o editor (a edição é da Companhia das Letras), devia girar em torno de dois temas básicos: exílio externo e interno. O livro é importante, mesmo inacabado, porque traz o conto Bem longe de Marienbad, uma história belíssima, até então só publicada na França, resultado de uma bolsa para produção de textos inéditos.
Em seguida, foram lançados também Teatro completo, que, como o nome indica, reúne todas as peças de Caio Fernando Abreu, e Pequenas epifanias, livro de crônicas organizado pelo amigo, secretário e anjo da guarda (palavras de Caio) Gil Veloso. Postumamente, ainda foram lançados Girassóis, trecho de uma crônica (A morte dos girassóis) transformada em livro infantil, uma coletânea publicada por amigos, Caio de amores, bem como a edição de parte de suas cartas, organizada por Ítalo Moriconi, e publicada em 2002, pela Aeroplano. Também pode ser encontrada no mercado uma estranha edição intitulada Fragmentos, que é uma seleção de contos, em edição de bolso, da L&PM. Antes de morrer, Caio revisou os livros Inventário do irremediável, cortando algumas histórias e transformando o título em Inventário do ir-remediável (segundo ele, para dar uma visão mais positiva para as histórias e para a vida, enfim), Limite branco e Pedras de Calcutá, todos reeditados na década de 90.
Talvez por Gil Veloso ser uma das pessoas que melhor conheceram o autor (Caio manifestou diversas vezes, inclusive em entrevistas, o desejo de tornar Gil, junto com mais dois amigos, herdeiros de seu espólio literário), com quem Caio tinha uma relação de amizade e admiração profunda, Pequenas epifanias é o único livro póstumo que consegue apresentar uma unidade — tão cara aos livros de contos do autor — que não deixa a impressão de obra de “gaveta”, publicada sem a orientação e consciência do seu criador. O livro é uma seleção de 10 anos de produção nos jornais Zero Hora e O Estado de S. Paulo, e, embora seja uma pequena mostra de sua veia de cronista, é, sem dúvidas, uma prova de que esse era, também, um gênero importante para Caio Fernando Abreu, a exemplo das três crônicas em que ele se confessa portador de HIV, intituladas Cartas para além do muro, em que vemos poesia e acontecimentos diários misturados numa linguagem precisa.
Caio é, de fato, um dançarino da palavra. Sua literatura alterna momentos de extrema leveza e ironia com passagens dolorosas e, por vezes, sem saídas. Seus textos são constantemente povoados por imagens de muros, cavalos, dragões, borboletas, sereias, damas da noite, azaléias, margaridas, salgueiros, chorões, pedras, maçãs, ovos apunhalados, praias escondidas, morangos que passam do ponto, ameixas que sangram, pombos cinzentos que bicam os olhos dos personagens protegidos pelo vidro da janela, vultos que dançam de amarelo, infinitos telhados e janelas, janelas, janelas. São imagens dotadas de cores, formas, cheiros, que inquietam o leitor muito acostumado à necessidade de traduções precisas. Mas o espaço de circulação dessas imagens é flutuante. Independentemente da dor, quase sempre elege a dança. Se é que ainda é possível dançar neste nosso tempo rarefeito. Se você acha que sim, então, abra bem os olhos, e venha.
Nota
[1]Noção desenvolvida por Silviano Santiago em Uma literatura nos trópicos (1978), para dar conta da necessidade de reconfiguração dos limites extrapolados de centro e periferia, baixa e alta cultura, original, cópia e simulacro, entre outros conceitos mobilizados pelos estudos literários e culturais.