O pretexto é contar os últimos anos de um dramaturgo famoso, Jerônimo Brickman, o J.B., em sua decomposição financeira, depois que uma inexplicável indenização recebida pelo Estado ameaça evaporar-se. O passado de ex-revolucionário, assim como o trabalho engajado e artístico somem na penumbra, desfazem-se na decomposição física de seu corpo redondo e apático. Ao redor, estão personagens que mal interagem — parecem igualmente apáticos e à espera, de frente para o mesmo rio — o Tietê — que passa carregando tralhas e desesperança.
São eles: Samara, sobrinha fútil ao lado de quem vive J.B.; a empregada Judite, que trabalha para eles, mas sem receber, suportando a angustiante expectativa do salário que nunca chega para pagar os estudos do filho; a jornalista Nina, à espera da grande chance de escrever o obituário de J.B., imersa em uma rotina sem alegria, além de Zeca, economista carioca, companheiro de Nina, que tenta sem nenhum sucesso se confundir com a paisagem. A interação entre os personagens é tão insossa quanto a relação de todos eles com o cenário que (não) os acolhe.
Várias leituras da sociedade se sobrepõem nas situações opacas em que cada um aceita viver. A elite, sempre decadente na forma de exclusão do outro — Samara dá festas, mas a empregada não recebe salário; os assalariados rondam ruas e esquinas em busca de ar em uma cidade sem afeto — “Não havia lugar para se sentir tão abandonado e desligado do mundo dos afetos quanto São Paulo, às margens do Tietê”, pensa Nina. Ou então: “Atreva-se a pôr os pés aqui e você vai ver o que acontece, era o que a cidade dizia aos iniciados”.
A ideia de que nunca se passa duas vezes pelo mesmo rio parece não significar grande coisa quando nenhuma transformação profunda se organiza debaixo daquelas águas; quando até o mau cheiro — “herança infecta, corrupta e sulfurosa transmitida de geração para geração havia muitas décadas” — sobrevive e resiste aos séculos. As marginais acompanham os trajetos, as não-escolhas, a apatia, a sonolência, a raiva e a morte (de fora ou de dentro) de pessoas que não estão dispostas a fazer nada diante do rio — sequer atravessá-lo — a não ser simplesmente: olhar e se deixar nublar.
Nada muda nunca, nem o olhar, nem o rio:
Várzea, progresso, autodestruição, novo progresso. O concreto formando o amálgama da agonia. Todos inscreviam uma linha na história da construção do eterno amanhã. Sonho e fúria sem fim sob a mira de tubos e antenas prateados.
Futuros incertos, tortos e vaporosos. O destino de Nina, como descrito com estas palavras, aplica-se aos demais. O que os salvaria é tão pouco. A jornalista, por exemplo, almeja conseguir escrever o tal obituário — despeja suas forças na empreitada. Os outros personagens nem sabem por que motivo estão de pé. O que está de fora — o rio, sua fuligem; a rua, seus desencontros — entra subitamente para dentro dos quartos, avança pelas janelas e se comunica com a solidão de cada um. Os cenários têm alma doente e cansada:
Os golpes de vento traziam para dentro da casa o tumulto, a fuligem e o vapor contaminado e putrefato. O céu era uma película densa, laminada, afugentando os olhos com seu brilho opaco. Esses ardiam irritados e sem lugar para ir que não fossem três ou quatro ipês, um amarelo e os outros lilás (…) Enfrentando o poder do sol, ilhotas de grama reviviam o verde em um oceano de chumbo.
Como viviam?
São Paulo parece, então, engolir quem chega, como o carioca Zeca, cujo futuro-destino de “mil projetos” vira literalmente fumaça: “O de Zeca era bastante difuso, uma profusão de fios soltos que formavam uma imagem incerta”. Para Samara era o mesmo, pois ela “dizia que a cidade tornara-se intragável, a verdadeira cloaca do mundo. Não era possível viver em São Paulo”. A pergunta que se faz é: como eles viviam antes?
O sentimento de abandono parece ser maior às margens do Tietê, pois ali a vida estava sempre de passagem, não fincara raízes.
Se realmente existisse algo que pudesse ser chamado de “desejo das coisas”, seria possível dizer que tudo naquelas bandas desejava fugir e nunca mais voltar — pedras, grama, chorões, primaveras, tabiques, motéis, oficinas mecânicas, estádios de futebol, carrinhos de catadores de papelão, shopping centers, parquinhos, galpões, viadutos, praças, tudo parecia gritar desesperadamente por um novo metro quadrado na Terra.
J.B., que no passado fora um homem acostumado a roubar a cena, transforma-se apenas no sujeito à beira de uma janela, que observa a revoada de andorinhas enquanto tenta ressurgir como artista, mas a alma pesa mais do que o corpo. O cheiro de velhice impregnava a casa, não havia mais nada que ninguém pudesse fazer.
As cortinas, a escrivaninha, a poltrona onde ele costumava ler, as estantes repletas de livros, o abajur — tudo cheirava a morte, decomposição, decrepitude, como se no ar não houvesse mais nenhuma súplica pela vida, tampouco a chance de um fim com dignidade.
Algumas cenas de violência riscam o céu sob o qual vivem Samara e J.B. O narrador é forte e consegue a proeza de não decidir pelo leitor qual emoção ele terá, o que é um acerto, pois consegue ser cru e ao mesmo tempo capaz de transmitir o desnorteamento de almas, corpos e corações que não sabem muito bem onde estão. Curioso que, em um determinado momento, Zeca se recorda de uma lenda sobre uma visita de Faulkner ao Brasil em 1954. Em São Paulo, participando de uma comitiva de escritores americanos, e já com alguns litros na veia para estimular a miragem alcoólica, ele abre a janela do hotel e diz: “Que diabos estou fazendo em Chicago?”.
O lugar do não-encontro, do abandono e das desilusões pode ser qualquer um, talvez a geografia nem esteja tomando conhecimento da desordem interna de todos. E, de repente, o Tietê também pode ser qualquer rio, que vai eternamente sofrer a inexistência de uma terceira margem.